Chapter Text
Mais uma noite, mais um show de merda.
Depois de tanta humilhação proporcionada pelo público mais desmotivado do mundo, fomos fazer uma “reunião” de banda no camarim compartilhado. Camarim não é bem o que eu chamaria isso, já vi muito pé-sujo mais elegante e organizado que isso, mas estou numa banda ainda muito desconhecida e não dá para exigir algo além de garrafas de água quente e um sofá velho e sujo.
Nosso glorioso líder, um imbecil com voz de ganso engasgado e que se recusa a me deixar de main vocal, começou a falar sobre o quanto o show foi bom mas poderia ter sido excelente, sobre trabalho em equipe e como a banda é uma... arg... ‘família’. O que esses idiotas tinham na cabeça de entrar no festival de bandas independentes mais importante da costa leste? não fazemos um show decente há meses e acharam que magicamente íamos ter milhares de fãs e um pedido de bis? fudidos que não reconhecem a própria mediocridade.
“hahahaha fala como se não estivesse na mesma banda medíocre”
“Cala a boca!” Acabei me expressando um pouco alto demais, atraindo atenção pra mim em meu canto isolado da sala. Eu estava apoiado na parede por que obviamente aqueles idiotas ocuparam todo o maldito sofá. Todos voltaram o olhar pra mim, o líder nem um pouco feliz de ter sido interrompido pelo garoto problema da banda.
“Tem alguma coisa a dizer? Kayn.” O líder se dirigiu a mim.
“Já que perguntou, eu tenho sim. Que merda foi aquela?! Eu falei que a gente não tava pronto pra um festival desse calibre e os 4 patetas ai não me ouviram e agora pagamos o maior mico!”
“A gente não teria perdido o ritmo se você não tivesse inventado aquele solo de guitarra!” disse o fulano da bateria que eu nunca me importei de decorar o nome.
“Ah me poupe, aquele solo foi a coisa mais emocionante que fizemos a noite toda e vocês sabem! Eu to ficando cansado de carregar vocês como uma mula, eu tenho mais talento na porra da ponta do pau do que vocês tem no corpo todo. Quando vão reconhecer isso e me ouvirem?!” Eu já estava ficando puto, era assim todo o show, maldito dia que eu aceitei entrar nessa banda.
“Você quer reconhecimento? ta bom, a verdade é que você se acha um prodígio porque aos 12 anos ganhou um prêmio idiota, mas é só um merda superestimado. Mas diz ai Kayn, do que adianta ter todo esse ‘talento’ se ninguém suporta trabalhar com você ?” Disse o líder, mas que cuzão.
“Quer saber? talvez eu não precise trabalhar com ninguém, principalmente com quem só ta me atrasando” Disse cutucando o dedo no peito do líder, já deixado a parede onde me apoiava a um tempo e esbravejava na frente da banda toda, que se foda.
“Talvez seja melhor mesmo, por que não faz um favor a todo mundo e...” Quando o líder tava terminando a frase tudo ficou escuro, não consigo lembrar de mais nada depois disso.
---------------------------
Acordei no dia seguinte na minha cama, no quarto de hotel mais barato que pudemos achar. Normalmente dividíamos o quarto em pares, mas claro que ninguém queria dividir o quarto comigo. Olhei ao redor, o quarto tava tão bagunçado quanto eu deixei na noite seguinte, a camareira não deve ter passado ainda.
Esses... apagões, não são tão incomuns na minha vida, quando criança e vivia com o p-Zed, eu vivia acordando no meio da noite nos jardins ou perdido pela casa, achavam que eu era sonâmbulo. Hoje eu já tenho ideia de que é o Rhaast, normalmente ele é uma voz na minha cabeça, mas às vezes eu apago e quando acordo percebo que ele pegou uma carona no meu corpo, tento juntar os pedaços do que aconteceu depois. Eu não tenho certeza de quem ou o que ele é, descobri ele há um ano, mas às vezes sinto que ele está comigo a vida toda. Desde então eu tendo a parecer que estou falando sozinho por causa dele, uns fulanos do grupo costumavam me olhar assustados quando isso rolava.
Estamos convivendo, ativamente ao menos, ele não parece ser um cara mau. As vezes eu acordo e descubro que ele fez umas músicas muito fodas ou conseguiu terminar músicas que eu estava com dificuldade, acho que posso considerar ele um alter ego ? Mas eu sinto que nem sempre foi assim, mas a pretensão do pensamento por si só me assusta um pouco, eu não quero pensar nisso. Algo me diz que ele não era sempre engraçado e inconveniente, mas é como um déjà vu, uma memória no topo de uma árvore que eu não consigo alcançar. Muito da minha vida são memórias no topo de uma árvore, eu lembro muito bem da casa do Zed e dos anos que passei lá, mas antes disso, no orfanato, eu só lembro que era um lugar de merda mas não consigo lembrar mais do que isso.
Abro o celular e vejo que me expulsaram do grupo da banda, não só isso, como também cada um daqueles merdinhas me bloqueou. Na escrivaninha do quarto eu consigo ver um pedaço de papel familiar rasgado ao meio, o meu contrato.
Ótimo, me expulsaram da banda, já vão tarde. Eu sempre soube que aqueles idiotas nunca me quiseram de verdade na banda, achavam que com a minha fama de prodígio iam ganhar alguma coisa, ha! Como se ser famoso em um gênero que não seja música pop melosa fizesse diferença nesse mundo. Música é sobre trabalho duro, sacrifício e talento, e eles não preenchiam nenhum requisito. E ainda vieram com o papo de ‘família’, até parece, nenhum deles sequer deu ao trabalho de tentar me conhecer, só me chamavam pra ensaios e shows, fomos praticamente estranhos por um ano inteiro.
“Você não precisa deles, estamos melhor sozinhos”
Tem razão, eu não preciso de ninguém, vou continuar fazendo música do meu jeito! Não quero um bando de extras me atrasando.
E é bom aqueles fudidos não terem me deixado a conta do hotel pra pagar.
---------------------------
Acordo com meu celular tocando, já era o que ? 14:00h ? Eu parei de me importar. Faz 3 meses que saí da banda, aparentemente nenhuma gravadora está interessada em fazer parceria comigo por que sou ‘problemático’ demais pra investirem, ainda mais num som de Trap com Punk Rock alternativo feito por um cara só, apesar do single que lancei ter viralizado no youtube e twitter.
O pouco dinheiro que eu tinha está acabando mais rápido do que eu previ, dá pra me virar , mas não a tempo de fechar um novo contrato pelo visto. Talvez se eu falar com o Zed... não, de jeito nenhum, não vou ser um idiota patético que volta com o rabo entre as pernas pra morar com os pais, eu sou melhor que isso, pelo amor de deus !
Pego o celular na escrivaninha ao lado, eram mensagens de um tal de... Aphelios ? ah, lembrei, eu conheci ele numa reunião aí da gravadora, ele parecia legal e trocamos números. A mensagem dizia sobre um novo projeto, Heartsteel, e quer saber se podemos conversar sobre.
Projeto, uma banda? Não, não vou cair nessa cilada de novo. Eu trabalho melhor sozinho, uma banda só vai me atrapalhar. Não estou tão desesperado pra tentar isso de novo.
Meu estômago ronca em protesto, lembro que não comi nada o dia todo e nem comprei almoço, no máximo deve ter uns pães no armário.
Tá, eu to desesperado, preciso de dinheiro logo e nenhum projeto pessoal meu tem tido chance. Talvez eu possa só ouvir o Aphelios, ver qual é a do projeto, talvez nem seja uma banda, talvez seja só um feat ou algo assim, de qualquer forma não vou deixar de fazer a minha música independente da proposta. Eu mando mensagem pro cara, marcamos hora em um restaurante pra conversar sobre esse projeto, ainda bem, por que eu estou morrendo de fome e talvez eu possa enrolar o cara pra pagar um almoço pra mim.
Vamo ver qual é a dessa Heartsteel.