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Do lado de fora de um pequeno apartamento no centro de Londres, a chuva caía pesada, como se o mundo quisesse se desfazer em milhões de pequenas gotas. Cada uma delas se estilhaçava no asfalto negro, transformando as poças em espelhos trêmulos sob a luz amarelada dos postes.
Hob Gadling apoiava o cotovelo no batente da janela do apartamento, o rosto parcialmente iluminado pela luz fraca da sala. O olhar, perdido, seguia as gotas escorrendo pelo vidro, como se nelas pudesse encontrar alguma resposta — ou um vestígio de algo que já não estava lá há muito tempo.
Ele suspirou, sentindo o coração apertar com a saudade que sempre se instalava em seu peito em dias como aquele, uma sombra silenciosa que se espalhava pelos seus ossos.
Suspendeu a respiração por um instante, até decidir se afastar e voltar para a sala — e foi então que ouviu três batidas na porta.
Ele congelou. Tão tarde? E com aquela tempestade? Quem, em sã consciência, apareceria ali agora?
Com um resmungo baixo, ele se virou, passando por entre móveis desordenados e garrafas de cerveja vazias no caminho. Ao abrir a porta, não esperava ver ninguém — talvez um vizinho batendo por engano, ou apenas o vento...
Mas o que viu fez seu coração parar.
Uma figura imóvel, encharcada dos pés a cabeça, com os cabelos negros grudados na testa. Os olhos escuros e fixos nele.
Hob prendeu a respiração.
— ...Sonho?
Por um segundo, teve certeza de que estava alucinando. Talvez tivesse bebido demais, talvez estivesse sonhando. Mas o homem à sua porta tremia. Tremia de frio, como qualquer ser humano.
Morpheus — ou o que restava dele — não disse nada. Apenas o olhou, os lábios entreabertos, tentando articular uma palavra, ou até mesmo compreender o que estava fazendo ali.
Hob sentiu algo dentro dele se quebrar e, ao mesmo tempo, se acender. A saudade que havia lhe corroído por tanto tempo explodiu em seu peito.
— Deus do céu... você está... — Ele não terminou. Não precisava. Apenas agarrou Morpheus pelo braço e o puxou para dentro, como se temesse que o vento ou a chuva o apagassem de novo.
A água escorria da roupa preta, formando poças no chão do corredor. Morpheus se deixou conduzir, passos lentos, pés descalços, o corpo frágil.
— Você... está vivo? — Hob perguntou, rindo nervoso, o coração em disparada. — Não, espera... você está mesmo aqui?
— E-... estou.
A voz soou rouca, hesitante, real. Tão real quanto a chuva pingando de seus cabelos, quanto a sensação quente que subiu pelo peito de Hob ao ouvi-lo.
— Certo... — Hob piscou rápido, tentando impedir que as lágrimas viessem. — Espere aqui. Só um segundo.
Ele correu até o banheiro, voltou com uma toalha e a jogou sobre os ombros estreitos de Morpheus. Não perguntou "como" ou "por quê". Apenas começou a secá-lo, com uma mistura de cuidado e desespero, temendo que ele desaparecesse a qualquer momento.
Morpheus fechou os olhos, tentando organizar as memórias que vinham como lampejos.
As terras sem sol. O rosto de Daniel Hall. Um brilho esverdeado. Mãos moldando um corpo. Depois, a rua molhada, as luzes, o barulho das buzinas, e um instinto silencioso o guiando até aquela porta. Até Hob.
— Eu... — tentou falar, mas a voz falhou.
Hob respirou fundo, as mãos tremendo ao segurar a toalha. Ele queria perguntar tudo, queria dizer tudo, mas as palavras ficavam presas. Só o que conseguia sentir era o coração disparado e a presença dele ali, de novo.
— Você está tremendo — Hob comentou, tentando sorrir. — Você. Tremendo. Isso é... novo.
Morpheus baixou os olhos para as próprias mãos, como se estranhasse aquela sensação. Elas não brilhavam, não emanavam nada. Apenas o calor incômodo de carne e sangue. E o frio.
Hob se agachou à frente dele, os olhos úmidos, tentando se convencer de que era real.
— É só um sonho? — perguntou, quase num sussurro, com uma dor profunda na voz. — Estou sonhando com você outra vez?
Morpheus abriu a boca para responder, mas foi interrompido por uma voz serena, firme, ecoando pela sala:
— Não, senhor Gadling. Você não está sonhando.
Hob se virou tão rápido que quase caiu para trás.
Daniel Hall estava ali. O novo Sonho dos Perpétuos, imóvel no centro de sua sala.
— Eu o trouxe de volta — disse ele. — Mas não como você o conhecia.
Hob piscou, confuso.
— Como assim?
Daniel caminhou até Morpheus e pousou uma mão leve sobre o ombro dele.
— Sua dor me tocou. E eu decidi que era hora de lhe dar algo diferente.
— Diferente? — Hob perguntou, sem saber se tinha medo ou esperança da resposta.
Daniel sorriu.
— Uma vida. Ele é humano agora. Carne e osso. Nenhum poder além do que qualquer homem carrega.
Hob arregalou os olhos.
— Humano?
— Sim. — Daniel o olhou de forma quase fraterna.
O coração de Hob se apertou, acelerando de um jeito doloroso.
Morpheus permaneceu calado o tempo todo, com uma expressão horrorizada em seu rosto.
— Você está falando sério?
— Considere um pedido de desculpas por... ter roubado aquele anel enquanto você dormia. Eu precisava dele para trazê-lo de volta.
Hob engoliu em seco. A cabeça estava um turbilhão, mas o coração só conseguia pensar em uma coisa: Morpheus estava ali. De volta.
— Obrigado.
Daniel sorriu e olhou para Morpheus, com algo parecido a um aviso em seus olhos.
— Você tem uma nova chance. Não a desperdice.
E então sumiu, como se nunca tivesse estado ali.
O silêncio voltou. Hob respirou fundo, tentando organizar a confusão na mente. Olhou para Morpheus, encolhido sob a toalha, tão estranho e, ao mesmo tempo, tão familiar.
— Certo... — disse, com uma risada nervosa. — Você é humano. Tá, eu posso lidar com isso. Mas, primeiro, vamos tirar essas roupas molhadas antes que você descubra o que é pegar uma gripe.
— Gripe? — Morpheus franziu o cenho, confuso.
Hob sorriu.
— É como um pesadelo, só que com lenços de papel e chá quente. Você vai adorar.
E, pela primeira vez em muito tempo, Hob sentiu que podia respirar outra vez.
Chapter 2: Panquecas
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Morpheus acordou com uma luz intensa batendo em seu rosto.
Por um instante, acreditou estar no Sonhar — mas logo percebeu que não havia nada ali que lhe fosse familiar. Nenhum murmúrio de sonhos sussurrando em sua mente, nenhuma maré de imagens e memórias alheias fluindo como um rio sem fim.
Era apenas… silêncio.
E o silêncio o incomodou.
Sempre existira um coro dentro dele: vozes, histórias, pesadelos, desejos. Cada sonho da humanidade respirava em sua mente como pequenas estrelas pulsantes. Agora, nada. Apenas o som de sua própria respiração — quente, irregular — e o incômodo ardor do sol em sua pele.
Virou o rosto, tentando escapar da luz, e os dedos roçaram algo estranho e macio. Lençóis. O tecido era áspero em alguns pontos, mas ao mesmo tempo aconchegante de uma maneira que ele não sabia nomear.
Levantou-se com cuidado, sentindo o chão frio sob seus pés, e seguiu pelo corredor, guiado por um cheiro doce e intenso, até encontrar Hob na cozinha.
Ele estava cantando, num tom muito baixo, uma cantiga antiga da era medieval enquanto virava panquecas na frigideira. A luz da manhã entrava pela janela, dourando seus cabelos e fazendo-o parecer, por um momento, uma pintura viva. Morpheus parou na porta, observando em silêncio.
Como ele consegue?
Como Hob podia existir com tanta leveza, tão completamente presente naquele corpo frágil e finito? Morpheus, por milênios, apenas observou a vida — nunca a sentiu. Sempre estivera acima dela, distante.
— Bom dia, bela adormecida. — a voz de Hob o tirou do devaneio.
— Eu… dormi por quanto tempo?
— Bastante tempo. — Hob sorriu, aproximando-se. — Mas isso é bom. Você parecia cansado.
“Cansado.” A palavra agora fazia sentido de uma maneira nova e desagradável. Seus músculos estavam pesados, o pescoço doía, e havia uma pressão estranha em sua mente.
Ele franziu a testa, irritado com aquela fraqueza. Antes, bastava um pensamento para dissipar qualquer desconforto. Agora, tudo parecia… fixo.
E então veio um som.
Um ruído baixo, estranho, vindo de dentro de si, seguido por uma pontada no estômago que o fez se curvar levemente.
— O que é isso? — perguntou, alarmado, a mão sobre a barriga.
— Você deve estar com fome. — Hob apontou para a mesa, rindo. — Sente-se. As panquecas já estão quase prontas.
Morpheus obedeceu, mas seus pensamentos continuavam a girar.
E o Sonhar?
Não conseguia sentir os sonhadores. Não havia ecos, não havia pesadelos pedindo sua atenção, nem histórias querendo nascer em suas mãos. Era como se uma parte imensa e invisível dele tivesse sido arrancada.
— Eu me lembro de ter te observado tantas vezes. Você, sempre seguiu vivendo. Eu nunca entendi… por que você nunca desistiu, mesmo depois de tanto sofrimento?
Hob deixou a frigideira de lado e o encarou com suavidade.
— Porque a vida, mesmo com tudo de ruim, vale a pena. Você nunca entendeu porque nunca viveu de verdade.
Morpheus não respondeu. As palavras de Hob lhe atingiram dolorosamente.
Quando o prato de panquecas foi colocado diante dele, ficou em silêncio por alguns segundos, sem saber o que fazer.
— Pode comer. Não é veneno, eu prometo.
Morpheus pegou o garfo com hesitação. A primeira mordida foi um choque.
O sabor explodiu em sua boca — doce, salgado, quente, a textura derretendo na língua.
E então ele comeu outro pedaço, e outro, e outro.
— É… muito…
— Muito bom? — Hob riu.
— Muito… tudo. — Morpheus encarou o prato como se fosse um enigma. — Nunca senti algo assim.
É claro que ele já havia comido quando estava entre mortais, e vez ou outra precisava comer para repor suas forças depois de usar demasiado poder, mas sempre como um ato mecânico, necessário. Nunca fora algo realmente prazeroso. Agora… cada mordida parecia um universo.
— Bem-vindo ao mundo humano. — Hob disse, com um sorriso cheio de ternura. — E isso é só o café da manhã.
Morpheus devorou as panquecas, cada garfada mais rápida que a anterior, até que o prato ficou limpo.
— Quer mais?
A resposta veio como um par de olhos escuros arregalados e lábios manchados com mel.
Enquanto Hob preparava outra rodada, Morpheus o observava com atenção curiosa.
A maneira como ele ria sozinho, o gesto simples de limpar a bancada, a luz do sol brincando em seus cabelos. Tudo parecia tão… vivo. Tão absurdamente real que seu peito doía com uma sensação estranha.
Ele se deu conta de que a maioria dos humanos sonhava com isso: Uma refeição quente e saborosa, um teto sob a cabeça, e alguém para compartilhar a vida.
Isso é felicidade? Ele se perguntou.
E então lembrou-se do que Daniel disse enquanto moldava seu corpo:
"Esta é a minha vontade: viva como um homem até o fim de seus dias, ou até o momento em que estiver pronto para partir. Quero ouvir suas histórias. Quero saber se, sem poder e sem glória, você pode finalmente… se permitir amar. Ser algo além de suas funções."
— Hob… — Morpheus chamou, a voz baixa.
— Hm?
— Obrigado.
Hob parou, surpreso.
— Pelo quê?
— Por não desistir. Por me ensinar a amar a vida.
Hob sentiu um calor subir ao peito.
— Sempre vou estar aqui, Sonho.
— Morpheus. — ele corrigiu. — Apenas Morpheus.
Chapter 3: Compras
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Se alguém dissesse a Hob Gadling que o Senhor dos Sonhos ficaria “fofo” usando uma camiseta velha e um par de calças largas que mal se seguravam em sua cintura, ele provavelmente riria. Mas é a verdade.
Morpheus — outrora um temido Perpétuo de poder imensurável — agora parece mais um gato molhado, enfiado nas roupas de Hob.
O cabelo escuro, ainda úmido e bagunçado pelo banho, cai em mechas desalinhadas sobre o rosto. Ele mantém aquela expressão severa, como se estar dentro de uma camiseta de banda dos anos 90 fosse uma afronta pessoal.
— Você vai precisar de roupas novas — declara Hob, encostado no batente da porta do quarto. — Minhas camisetas não foram feitas para… hm... reis de qualquer tipo.
Morpheus ergue o olhar, sério.
— Isso é desnecessário. Estas roupas não me agradam, mas… funcionam.
— Funcionam? — Hob cruza os braços, tentando não rir. — Você parece uma criança tentando usar as roupas do pai.
Morpheus o encara em silêncio, e Hob se sente muito aliviado que ele não tenha mais seus poderes. Do contrário, estaria lidando com pesadelos agora, ou com sono eterno.
— Vem — diz ele, pegando as chaves do carro. — Vamos comprar roupas decentes pra você.
*
Entrar em uma loja de roupas é um choque para Morpheus.
Primeiro, a música alta, irritantemente alegre. Depois, o cheiro forte de perfume misturado com tecido novo.
As luzes artificiais são tão intensas que ele pisca várias vezes, desconfortável.
— Por que há tantas versões da mesma peça? — murmura, apontando para uma fileira interminável de camisetas.
— As pessoas gostam de opções — responde Hob, tentando não rir. Ele pega uma jaqueta de couro de uma arara e segura contra o corpo do outro, imaginando o quanto ele vai odiar.
Morpheus não responde. Apenas encara seu reflexo no espelho como se não reconhecesse quem está ali.
Pela primeira vez, percebe que, entre todos os milhares de rostos que poderia ter usado, Daniel escolheu moldar sua nova imagem com base na maneira como Hob o via. Um rosto mais humano, menos etéreo, com traços que lembravam ternura em vez de ameaça.
Uma parte dele, aquela que um dia foi um rei impiedoso, sente desconforto. Mas outra — essa nova, confusa e quebrada — se pergunta se finalmente está sendo visto como ele poderia ter sido, e não como fora forçado a ser.
Hob o observa, e seu olhar é doce. Essa figura que agora torce o nariz para uma jaqueta de couro é o mesmo que já carregou o mundo nos ombros. E, ainda assim, parece não saber onde guardar as mãos.
Eles caminham entre os corredores, Hob seleciona as peças que acha que seu... Amigo, amante, hóspede? Vai odiar menos.
— Experimente essas — diz ele, entregando-lhe uma pilha com cerca de vinte peças diferentes.
— Você quer que eu… vista todas elas?
— É. É assim que funciona.
— Não gosto dessas cores.
— Você nem experimentou. Por favor?
Hob junta as mãos, implorando silenciosamente. Por fim, Morpheus cede.
A sessão nos provadores é um espetáculo à parte.
Hob espera do lado de fora, jogando peças por cima da porta como quem alimenta uma fera enjaulada.
Do outro lado, há um ruído irritado de tecido sendo puxado.
— Gostou dessa? — pergunta Hob, quando Morpheus aparece com uma camisa cinza ajustada e uma calça jeans azul.
— Não gosto — responde ele, torcendo o tecido com desgosto. — É desconfortável.
— É algodão. Não tem nada desconfortável aí.
— Tudo é desconfortável — Morpheus suspira longamente, como se vestir-se fosse uma tarefa que exigisse heroísmo.
— Okay... Vamos tentar outra coisa. Prova essa aqui.
Ele joga uma camisa social branca de mangas longa, Morpheus a segura entre os dedos.
— Branco?
— Relaxa, eu prometo que ninguém vai morrer se você usar outra cor.
Morpheus bufa, mas cede novamente. E minutos depois, sai do provador com a camisa nova.
Há algo desconcertante em vê-lo usando algo tão simples.
O contraste com aquela expressão séria faz parecer que ele acabou de sair de uma sessão de fotos para alguma revista chique.
— Você fica bonito assim — diz Hob, antes que possa se censurar.
— Está dizendo isso para que eu aceite.
— Não. Estou dizendo porque é verdade.
Hob dá um passo à frente para ajustar o colarinho.
Seus olhares se encontram brevemente, e as memórias de todos os seus encontros dançam pelos seus pensamentos. Todas as escolhas que os levaram até esse exato momento.
A vida é mesmo uma caixinha de surpresas.
Em um dia, você é um soldado bebendo em uma taverna e falando bobagens para seus companheiros, e no outro, está ensinando um ser de bilhões de anos a fechar os botões de uma camisa.
Morpheus pensa em como ser humano é um trabalho de tempo integral. É preciso estar atento aos sinais do corpo, como fome, sede, sono. Vestir-se, trabalhar, cozinhar. É muito mais cansativo do que parece.
Hob pensa na última vez em que se encontraram, quando Morpheus ainda era o Sonho dos Perpétuos. Na batalha do sonhar, e em tudo o que havia aprendido com ele naqueles últimos instantes de sua vida divina.
Enquanto encara os lábios de seu estranho, ele se pergunta se seus sentimentos continuam os mesmos. Se seu novo coração irá amá-lo da mesma forma.
No fim, acabam levando apenas peças pretas e simples: uma calça jeans esvura, uma camiseta de linho, um sobretudo, coturnos, meias…
— Eu não entendo — diz Morpheus, já no caixa. — Você troca de roupa todos os dias?
— Sim. É o que todo mundo faz.
— Que desperdício de tempo.
O atendente do caixa lança um olhar estranho para os dois quando ele fala isso.
Enquanto pagam, Hob lhe explica como usar um cartão, e a diferença entre crédito e débito. Morpheus finge que entende e por hora, é o suficiente.
O caminho de volta é silencioso.
Hob dirige, lançando olhares ocasionais ao banco do passageiro.
Morpheus, agora seco, de cabelos arrumados e com roupas novas na sacola, observa a ruas passarem, com os olhos de quem está vendo o mundo pela primeira vez.
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A primeira vez em que Morpheus ficou doente foi... memorável.
Tudo começou com uma dor de garganta, seguida por uma sensação de calor insuportável que se espalhava por todo o corpo. E a pior parte: espirros! Pequenas explosões que sacudiam seu corpo inteiro como se algo maligno estivesse tentando se libertar.
Hob percebeu que algo estava errado quando o encontrou pela manhã, encolhido sob dois cobertores no sofá. Olhos e nariz vermelhos, tremendo levemente com a brisa fria que vinha das janelas.
— Você está horrível — constatou Hob, ainda sonolento, ajoelhando-se à frente dele.
— Estou... me desintegrando — sussurrou Morpheus, com a voz falhando. — Ou sendo punido por alguma transgressão cósmica.
Hob mordeu o riso e tocou a testa dele. Quente. Quente demais.
— Você deve estar gripado. É o que acontece quando se caminha na chuva por horas, descalço e vestindo somente um roupão.
Morpheus arqueou uma sobrancelha, ofendido.
Hob levantou-se e foi até o banheiro. Pegou o termômetro no armário e, quando voltou, encontrou Morpheus encarando-o com suspeita.
— O que é isso?
— Um termômetro. Serve para medir a temperatura.
— Parece uma arma. Ou um artefato de contenção.
— É só um bastão de plástico com sensores — responde Hob, rindo. — Vai debaixo da língua. Não é tão difícil assim.
Com relutância teatral, Morpheus abriu a boca e permitiu que Hob posicionasse o termômetro sob sua língua. Seus olhos permaneciam fixos nele, como se esperasse uma emboscada.
Quando o aparelho apitou, Morpheus o retirou com um gesto exagerado.
— Trinta e nove — leu Hob. — Febre.
— Isso confirma o que eu disse. Estou sendo destruído por dentro.
— Não seja tão dramático. Para sua sorte, seu companheiro é um homem que sobreviveu à peste. E eu sei exatamente do que você precisa.
Morpheus murmura algo ininteligível e se afunda no sofá, sentindo-se traído por este novo corpo que não parava de conspirar contra ele.
O dia passa lentamente. Morpheus continua enrolado entre os cobertores, como um burrito triste, enquanto Hob prepara uma série de remédios caseiros. Entre eles:
Sopa de galinha. Horrível.
Chá de gengibre. Aceitável.
Uma mistura estranha com ervas e mel. Estranhamente bom.
Quando o chá chega à terceira rodada, o céu já escurece atrás das janelas, e a chuva volta a cair, tamborilando contra os vidros. Morpheus está encostado nos ombros de Hob, que lê para ele uma nova edição de Hamlet.
Há um estranho tipo de paz nisso, em ser cuidado.
Ele já fora cuidado assim, alguma vez? Por alguma de suas esposas, um familiar, ou um amigo? Não. É claro que não.
Quando a última frase da peça se desfaz no silêncio da sala, Morpheus murmura:
— Eu vou morrer?
A pergunta escapa com simplicidade, mas paira no ar como névoa. Hob hesita por um segundo, fecha o livro com cuidado e o deposita ao lado, sem se afastar.
— Não por uma gripe — responde com um sorriso discreto. — Mas vai continuar rabugento por alguns dias, para o meu azar.
Morpheus inclina um pouco a cabeça para encará-lo. O canto de seus lábios se curva quase imperceptivelmente. Ele reconhece o esforço de Hob em manter as coisas leves. Mas seu olhar... continua distante. Um brilho indefinível atravessa suas íris castanhas. Medo, talvez.
— Você... se lembra da sua morte? — ele pergunta, quase sussurrando, como quem tateia uma ferida aberta.
O rosto de Morpheus se volta para o teto, pensativo.
— Sim — diz, por fim. — Foi... estranho. Me lembro de minha irmã estendendo suas mãos para mim. E de ser envolvido por suas asas. Eram enormes, e frias.
Ele fecha os olhos, lembrando-se daquele momento. De como havia se sentido pequeno diante dela. A irmã que ele tanto admirava. Sentia imensa falta dela e de seus outros irmãos, mesmo que sua convivência não fosse constante ou pacífica.
Hob se ajeita, inclinando-se para mais perto e abraçando-o por cima dos cobertores.
Morpheus abre os olhos, mas não o encara.
— Eu achava que merecia morrer. Que era o preço a ser pago. Uma forma de salvar o meu reino. Mas a morte não é meramente uma punição, nem uma borracha capaz de apagar os erros cometidos em vida, ou aliviar qualquer dor. Não podemos terceirizar a nossa responsabilidade à ela. Ela não é uma aplicadora da justiça, tampouco uma sentença. É uma dádiva, assim como a vida.
Cada palavra que escapava da boca de Morpheus era como uma adaga invisível que o perfurava.
Hob podia ver a tensão em seu maxilar, o modo como seus olhos escureciam ao falar sobre o passado.
Luto. Culpa. Esperança.
Eram sentimentos que ele conhecia bem.
— Você pensa nele? — perguntou em voz baixa. — Em Orfeu?
A reação de Morpheus foi mínima. Um leve piscar dos olhos.
— Eu sempre penso nele. Mesmo quando tento não fazê-lo. Principalmente quando tento não fazê-lo.
Ele inspirou devagar, os olhos agora fixos em suas próprias mãos, como se nelas estivessem inscritas as decisões que o haviam condenado.
— As pessoas dizem que fica mais fácil. Mas é mentira. — Hob diz, suavemente.
Morpheus o encara, surpreso com a mudança de tom. Hob raramente falava sobre o passado assim, sem rir ou transformar em uma anedota.
— Meu peito ainda dói quando penso em Eleanor. No meu filho que sequer chegou a nascer. Em Abby. Em todos os que eu perdi — ele continuou, os olhos fixos em um ponto indefinido da parede. — Nas pessoas que matei quando era soldado. Nos crimes que cometi. Nas embarcações de escravos que escolhi ignorar, mesmo sabendo. Eu poderia me punir mais do que já faço com os meus próprios pensamentos e arrependimentos. Mas isso traria essas pessoas de volta?
Ele balançou a cabeça devagar. Um sorriso seco surgindo em sua face.
O lado sombrio que Hob Gadling nunca mostrava a ninguém.
— A resposta é não. Então eu continuo vivendo. E tento ser melhor.
Morpheus o observa em silêncio, os olhos escuros opacos pela febre, mas intensos como sempre.
Hob coloca uma mão sobre a dele.
— Você mudou, Sonho. Não é mais o mesmo Deus cruel. Você merece viver.
— Morpheus — ele corrige.
— Você sempre vai ser o meu Sonho.
Notes:
Esse capítulo ficou bem mais sentimental e filosófico do que eu gostaria. Prometo que não vou ficar escrevendo sempre coisas tão tristes.
Quero que essa fic seja um refúgio para todos que ficaram desolados com o final da série.Beijos quentinhos ❤️
Chapter 5: Selfie
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Hob colocou um celular nas mãos de Morpheus, que o segurou como se fosse uma bomba prestes a explodir.
— O que é… isso?
— Um telefone.
— Telefone? — Ele franziu a testa, confuso. — Este pequeno retângulo?
É claro que ele sabia o que era um telefone. Afinal, havia acompanhado de perto e até mesmo inspirado muitas invenções humanas.
Mas Morpheus se lembrava de telefones com fio que eram grudados às paredes, muito diferentes do pequeno artefato brilhante e fino que agora segurava com as duas mãos.
— Ele faz ligações, manda mensagens, tira fotos, toca músicas, e basicamente carrega todo o conhecimento humano dentro dele. — Hob explicou. — É como uma biblioteca infinita que cabe no bolso.
Morpheus piscou, encarando a tela, analisando cada centímetro.
— Isso emite luz.
— Você vai se acostumar.
— Vibrou.
— Alguém te mandou uma mensagem. No caso, eu mesmo.
Morpheus franziu o cenho para o nome "Hob <3" piscando na tela.
— Isso é… sua assinatura?
— É meu contato. Clica.
— Isso parece perigosamente íntimo...
Hob soltou uma risada.
— Você sobreviveu ao inferno. E a morte. Acho que consegue lidar com um toque na tela.
Com relutância, Morpheus obedeceu. A conversa estava vazia, exceto por uma única mensagem de Hob:
“👋 Bem-vindo ao século XXI, senhor dos sonhos.”
— Isso é um símbolo?
— Um emoji. É um aceno.
Morpheus olhou como se tivesse acabado de descobrir que estava sendo observado por criaturas minúsculas.
— É um tipo de linguagem codificada?
— Um pouco. Vai entender depois. Mas antes… — Hob deslizou o dedo até a câmera frontal. — Precisamos fazer isso.
— O que é “isso”?
— A sua primeira selfie.
A imagem deles apareceu na tela: Morpheus levemente inclinado para trás, olhos apertados de desconfiança; Hob já com um meio sorriso, satisfeito.
Morpheus hesitou.
— Eu não… costumo deixar imagens minhas circulando por aí.
— Relaxa, essa vai ficar só comigo.
— Isso deveria me confortar?
— Sim — respondeu Hob, rindo. — Vem cá.
Ele envolveu os ombros de Morpheus com o braço e aproximou os dois. Morpheus ainda parecia incerto, mas não se afastou.
— Não faça essa cara — Hob riu. — Parece que você está prestes a condenar a humanidade inteira.
— Esta é a minha expressão normal.
Click.
O flash o deixou cego por um milésimo de segundo.
Hob mostrou a imagem, orgulhoso.
— Veja só. Perfeita.
Morpheus inclinou a cabeça, analisando a imagem como se fosse uma obra de arte abstrata: ele mesmo, com uma expressão de leve pânico, e Hob sorrindo ao seu lado como se aquele momento fosse tudo o que importava.
— Apague.
— Nunca.
*
No fim da tarde, eles decidiram caminhar pelo parque.
Apesar do frio, crianças riam alto correndo umas atrás das outras, construindo bonecos e jogando bolas de neve, e jovens apaixonados tiravam fotos, congelando pequenos instantes de felicidade e beleza.
Hob caminhava ao lado de Morpheus, as mãos nos bolsos, enquanto o outro observava tudo com olhos atentos.
— Está vendo isso? — Hob diz, apontando discretamente para um casal sentado na grama, compartilhando uma garrafa de vinho. — É para isso que serve o ar fresco. Você precisa sentir as coisas fora de casa.
Morpheus ergueu uma sobrancelha.
— Não sei se sentir tanto assim é saudável. Este corpo absorve tudo: cada mudança de temperatura, cada ruído, cada perfume. É como se o mundo estivesse gritando o tempo todo.
— É… mas é isso que faz a vida ser… viva — Hob respondeu, sorrindo.
Morpheus o olhou de lado, em silêncio.
Eles pararam por um momento para observar uma criança tentando, com esforço e risadas, manter sua pipa no ar. O vento forte dançava contra a linha, e o garoto, mesmo tropeçando, insistia em fazê-la voar.
— Eles parecem mais felizes — comentou Morpheus, olhando ao redor, reparando nos sorrisos e na leveza que pairava no ar. — Mais… leves.
— Talvez seja só um dia bom — Hob sugeriu, seguindo o olhar dele.
— Ou talvez… seja ele. Daniel.
— Daniel?
— Se os sonhos moldam a realidade, um novo Sonho, mais jovem, mais inocente e bondoso, pode mudar a maneira como os humanos sentem o mundo.
Hob arqueou as sobrancelhas.
— Você está dizendo que Daniel está tornando os sonhos melhores?
— Talvez. — Morpheus olhou em volta, para os sorrisos e até para os jornais nas bancas, quase livres de tragédias. — Talvez ele seja o Sonho que os humanos sempre precisaram.
Hob ficou em silêncio por um instante, pensativo.
— Você acha que ele vai voltar?
— Sim. Imagino que, em algum momento, ele queira um relatório das minhas experiências.
Eles continuaram a caminhada até encontrarem uma árvore grande, cujos galhos estavam cobertos de neve. Hob se sentou na grama gelada, apoiando-se nos cotovelos, e esperou até que Morpheus se acomodasse ao lado.
— Você sente falta? — Hob perguntou, olhando-o de canto. — Do Sonhar, das suas responsabilidades?
Morpheus ficou em silêncio por alguns segundos antes de responder, os olhos fixos no céu pálido.
— Menos do que imaginei. — Ele suspirou, lento. — Sinto falta de Lucienne, Matthew, Mervyn, Coríntio… até mesmo dos meus irmãos. O que me surpreende.
Hob virou-se para ele, com aquele brilho brincalhão nos olhos.
— Quer saber? Acho que você está ficando bom nisso.
— Bom… em quê?
— Em ser humano.
Morpheus revirou os olhos. E sorriu.
Eles passaram o resto do dia ali, conversando.
Hob tagarelava sobre uma infinidade de coisas. E Morpheus ouvia. E observava, tentando memorizar cada detalhe dele: a curva do sorriso, a forma como a luz do sol, refletida na neve iluminava seu rosto moreno. Havia algo etéreo e especial naquele instante.
Foi então que ele se lembrou do celular. Pegou-o com certa hesitação, ainda pouco acostumado com o objeto, e abriu a câmera. Hob, distraído, nem percebeu o clique.
Depois, Morpheus baixou o aparelho, encarando a imagem com olhos brandos.
Desta vez, não quis alterar nada. Apenas guardou aquela foto como se fosse um pequeno tesouro.
Chapter 6: Conversas De Bolso
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Aos poucos, Morpheus começava a se adaptar à sua nova vida.
Já não olhava para a comida como um mistério perigoso, nem esquecia — com tanta frequência — que precisava beber água. Ele também havia descoberto que gostava de tomar banhos quentes, mesmo que não entendesse por que sua pele formigava depois.
Ainda achava cansativo andar longas distâncias, mas Hob insistia que “isso é bom para as pernas”.
Naquela manhã, porém, Hob acordou cedo e estava vestindo uma camisa social amassada quando Morpheus saiu do quarto, sonolento.
— Você vai a algum lugar? — perguntou, com a voz baixa.
— Trabalho — Hob respondeu, ajeitando a gravata diante do espelho. — Sou professor, lembra? As aulas voltam hoje.
Morpheus fez uma careta.
— Então… você vai me deixar sozinho?
— Só por algumas horas. — Hob se virou, sorrindo. — Promete que não vai se meter em encrenca?
— Eu nunca me meto em encrenca.
Hob arqueou uma sobrancelha.
— Claro que não. — E deu um beijo rápido na testa de Morpheus antes de sair.
Quando o apartamento ficou em silêncio, Morpheus percebeu que não sabia muito bem o que fazer. No Sonhar, bastava um pensamento para criar qualquer coisa. Agora, havia apenas um sofá, uma estante com livros e uma TV que não fornecia entretenimento digno de um rei.
Quando estava prestes a morrer de tédio, seu celular vibrou:
(08:47)
Hob: Você tomou café da manhã?
Morpheus: Não.
Hob: …por quê?
Morpheus: Esqueci que tenho que fazer isso.
(08:49)
Hob: 😑 Morpheus…
Morpheus: Não use esse emoji contra mim.
Hob: Esse emoji é de “decepção”. E eu tô bem decepcionado.
Morpheus: …
Hob: Vai comer uma torrada agora.
(09:12)
Morpheus: A torradeira soltou fumaça.
Hob: VOCÊ QUEIMOU A TORRADEIRA?
Morpheus: Possivelmente.
Hob: Como alguém que já governou o tecido dos sonhos pode perder para um pedaço de pão?
Morpheus: Foi uma luta desonesta.
(10:05)
Morpheus: Acabei de aprender o que é “reels”.
Hob: Morpheus... por favor, não se perca no Instagram.
Morpheus: Um vídeo de uma cabra tocando bateria me entreteve por sete minutos.
Hob: Isso é só o começo.
(11:20)
Hob: Estou no intervalo da aula. Tudo bem aí?
Morpheus: Estou anotando coisas que gosto.
Hob: Curioso. Me diz uma.
Morpheus: Chá preto.
Hob: Só isso?
Morpheus: Seu cheiro. E quando você sorri.
Hob: Isso foi fofo, então vou fingir que você não queimou a torradeira hoje cedo.
(12:00)
Morpheus: Estive explorando o seu apartamento.
Hob: Encontrou algo interessante?
Morpheus: Por que tem algemas no seu guarda roupas?
(14:35)
Morpheus: Vi um vídeo ensinando a fazer “panquecas fofinhas”.
Hob: Você ainda nem se recuperou da torrada.
Morpheus: Mas agora tenho mais conhecimento.
Hob: Mais conhecimento = mais formas de botar fogo na cozinha.
(15:36)
Morpheus: Estou no supermercado. Preciso de instruções.
Hob: …como assim? Você foi sozinho?
Morpheus: Sim. Usei o mapa do aparelho.
Hob: Deus. Ele está evoluindo.
(15:50)
Morpheus: Há muitas opções de farinha. Qual é a diferença entre “com fermento” e “sem fermento”?
Hob: A com fermento cresce sozinha. A sem fermento precisa que você adicione fermento separado.
Morpheus: Isso é desnecessariamente confuso.
Hob: Bem-vindo ao mundo humano.
(15:52)
Morpheus: Há também “farinha de aveia”, “de amêndoas”, “integral”, “00”, “tipo 1”...
Hob: Pega a normal. De trigo.
Morpheus: Pobremente rotulada.
Hob: Estou começando a achar que você quer que essa panqueca falhe.
(16:01)
Morpheus: Encontrei o leite, mas... há leite de vaca, vegetal, sem lactose, de aveia, de castanha…
Hob: Qualquer um que venha de um mamífero.
Morpheus: Entendido.
Depois de meia hora de indecisão, Morpheus encheu o carrinho com coisas que pareciam úteis:
Ingredientes para panquecas.
Três tipos de queijo.
Uma caixa de suco (por que não?).
Quatro chocolates.
Quando Hob voltou para casa, a cozinha estava um caos.
Farinha espalhada pelo balcão, uma espátula grudada no teto (não era claro como), e uma frigideira ainda soltando fumaça suspeita na pia.
Morpheus estava parado no centro da destruição, segurando um prato com três panquecas de aparência... questionável. Uma era quase preta. A do meio tinha um formato que lembrava o mapa da Austrália. A última parecia estar tentando escorregar sozinha pela borda.
Hob se deteve na porta da cozinha, paralisado pela visão.
— O que... houve aqui?
— Panquecas. — Morpheus disse, com absoluta solenidade.
Hob piscou, olhou para o prato, depois para o chão coberto de respingos e depois de novo para Morpheus.
— Isso é uma ameaça?
— É um presente.
Hob se aproximou com cautela, pegou um pedaço com os dedos e provou.
Silêncio.
— …Tem gosto de fumaça. E baunilha. — Ele sorriu. — Você se esforçou mesmo, não é?
Morpheus fez que sim, erguendo levemente o prato. O gesto era quase orgulhoso.
— Eu segui as instruções. Quase todas.
Hob riu e pegou a mais chamuscada.
— Da próxima vez, fazemos juntos.
Morpheus não respondeu. Mas o canto de sua boca se curvou — só um pouco — enquanto observava Hob mastigar com esforço heróico.
Chapter 7: Trabalho
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Já faziam alguns meses desde que Morpheus havia retornado — ou melhor, reencarnado, aparecido, ressurgido. Hob ainda não tinha certeza de como descrever o fenômeno que o colocara novamente em sua vida, mas isso não importava tanto quanto o fato de que ele estava ali.
Dormindo no sofá quando o dia estava quente demais, tomando chá com expressão compenetrada, conversando com as plantas da varanda como se esperasse que elas lhe contassem um segredo.
Naquela tarde, enquanto Morpheus assistia um documentário sobre pinguins, Hob estava na mesa da cozinha, cercado por contas abertas, extratos bancários e uma calculadora.
— Robert Gadling... — murmurou ele para si mesmo. — Você está fazendo contas para alimentar o ex-Rei dos Sonhos. Isso é o que sua vida se tornou.
Ele suspirou. O número no rodapé da fatura do cartão de crédito piscava para ele como um aviso divino. Era impressionante como o Morpheus humano conseguia consumir tanto chá, frutas exóticas, doces importados, livros, sais para banho e óleos essenciais que supostamente “melhoravam o humor” - segundo o atendente da loja, não segundo Morpheus, que os cheirava com ar neutro e dizia "aceitável".
Hob fechou a pasta de contas com um estalo determinado e foi até a sala.
— Sonho?
— Sim?
Ele nem desviou os olhos da TV, onde um filhote de pinguim tentava manter o equilíbrio no gelo.
— Precisamos conversar sobre dinheiro.
— O dinheiro é um conceito efêmero. Um símbolo de valor atribuído artificialmente às coisas. — Ele se virou para Hob e piscou lentamente, satisfeito com sua própria sabedoria.
Hob cruzou os braços.
— Bom, esse “símbolo efêmero” está acabando.
— O que você sugere?
— Um emprego.
Morpheus encarou Hob por um tempo. Então desviou os olhos de volta para os pinguins.
— Eu fui soberano do Sonhar por incontáveis eras. Dei forma aos sonhos e pesadelos de toda a criação. — Ele pausou. — O que... exatamente... você acha que eu posso fazer aqui?
Hob coçou a nuca, tentando manter a seriedade.
— Algo simples. Temporário. Você pode... trabalhar numa livraria? Você gosta de silêncio. E de livros.
Morpheus considerou.
— Vai ser divertido. Você pode conhecer pessoas, e até usar seu próprio crachá.
Morpheus suspirou.
— Isso parece humilhante.
— Bem-vindo à vida adulta, querido.
Na manhã seguinte à conversa com Hob, Morpheus estava sentado à mesa da cozinha com uma caneta-tinteiro preta e um caderno aberto. No topo da página, ele escrevera com uma caligrafia precisa:
“Empregos possíveis.”
Abaixo, enumerava possibilidades:
1. Bibliotecário
2. Consultor de sonhos?
3. Cuidador de plantas
4. Barista
Ele tamborilou os dedos longos sobre a borda da mesa. O caderno estava aberto diante dele, mas sua mente estava longe, vagando.
Trabalho. Um conceito interessante. Para muitos, uma maldição. Para outros, propósito. Algumas vezes, ambas as coisas ao mesmo tempo.
Mas para que serve, de fato?
Era estranho pensar nisso agora. Ele nunca precisara ser útil. Nunca precisara provar seu valor. Os sonhos o obedeciam, os pesadelos o temiam, os deuses reconheciam sua autoridade mesmo quando a detestavam. Mas aqui... no mundo dos vivos, a utilidade parecia ser a régua pela qual todas as coisas eram medidas.
Ele levantou, vestiu um casaco de lã que Hob deixara pendurado na porta, e saiu para caminhar.
As ruas estavam cheias. Lojas abrindo, cafés cheios, ônibus passando. Entregadores equilibravam caixas, artistas de rua desenhavam caricaturas, um homem gritava ofertas de bolos artesanais na esquina com uma empolgação que Morpheus achou… admirável.
“Contribuir para o coletivo”, ele pensou.
Era isso que movia essas pessoas?
Parou em frente a uma loja de antiguidades. O vitral empoeirado refletia seu rosto humano, franzido de dúvida. Por um momento, sentiu-se como um turista em um mundo onde tudo exigia esforço para existir. Mas também havia algo instigante naquilo. A ideia de não ser um pilar universal — mas alguém que faz parte de um todo, que ajuda com pequenas coisas.
Voltou para casa com uma sacola de pão fresco e duas xícaras de mocha latte que equilibrava com um cuidado que quase o fez tropeçar no gato da vizinha.
Hob o esperava no sofá, com o notebook no colo.
— Então? — perguntou. — Pensou em alguma coisa?
Morpheus entregou o café e se sentou ao lado dele.
— Ainda não. Mas tenho algumas ideias.
Hob sorriu.
— Você vai encontrar. Só não se candidate pra trabalhar no turno da madrugada. Isso bagunça tudo.
Morpheus sorriu de volta, sem perceber que era a terceira vez naquela semana que sorria sem esforço.
Nos dias seguintes, ele compareceu à algumas entrevistas:
Loja de Animais Exóticos – Entrevista nº 1
— Você já trabalhou com araras, iguanas ou filhotes de dragão barbudo?
Morpheus inclinou a cabeça.
— Tive dois dragões de estimação. Um hipogrifo, e um corvo.
A gerente deu um risinho nervoso.
— Isso é… legal. Mas precisamos de alguém que saiba limpar gaiolas.
Morpheus levantou lentamente.
— Creio que essa função não se alinha com minhas capacidades criativas.
Cafeteria – Entrevista nº 2
O gerente, um rapaz coberto de tatuagens, apontou para a máquina de espresso.
— Sabe usar isso?
Morpheus a encarou por longos segundos, como se a estivesse decifrando.
— Ela assobia para mim.
— É só o vapor.
Morpheus franziu os lábios.
—Barulhenta demais.
Livraria de Bairro – Entrevista nº 3
— Você é pontual?
— Eu sou filho do tempo.
— Hum… ok. Tem experiência com planilhas de estoque?
— O que é uma planilha?
Silêncio constrangedor.
— Vamos manter seu currículo em nossos arquivos.
— Por quanto tempo?
— Depende.
— Tudo é efêmero.
— Isso foi poético.
— Obrigado.
Após a quarta entrevista, igualmente mal sucedida, Morpheus parou de tentar.
Ele passou a observar.
Na padaria, uma senhora escrevia cartas para alguém que provavelmente não existia mais. No ônibus, um adolescente desenhava monstros nos cantos do caderno da escola. Em uma praça, dois irmãos pequenos inventavam um idioma próprio e se entendiam perfeitamente.
E então, à noite, deitado ao lado de Hob, com o teto do quarto transformado em céu estrelado por um truque de luz que ele mesmo aprendeu a fazer, finalmente compreendeu:
— Eu sinto falta de criar. — falou em voz alta.
Hob se virou, meio sonolento.
— Você ainda pode.
Morpheus ficou em silêncio por alguns segundos.
De manhã, quando Hob acordou, encontrou-o na sala, com uma velha máquina de escrever resgatada de um antiquário. O sol entrava pelas janelas, iluminando os ombros estreitos. Os dedos dele se moviam com uma delicadeza reverente sobre as teclas.
“Contos do Reino dos Sonhos
Capítulo 1 – A criatura feita de vidro que se alimentava de lembranças felizes.”
Hob sorriu.
— Finalmente um emprego digno de um Rei.
Morpheus não respondeu. Mas continuou escrevendo, com os olhos cheios de ideias.
Chapter 8: Desejo
Notes:
Esse capítulo contém conteúdo explícito (18+)
Chapter Text
O novo corpo de Morpheus lhe trouxe muitas sensações inesperadas. O frio cortante da manhã, o peso entorpecente do sono, a fome afiada depois de longas horas sem comer. Mas entre todas, era o desejo que mais o surpreendia.
É claro que ele sentia desejo quando ainda era um Perpétuo. Mas era apenas um eco. Alguns milênios sem sexo não costumavam ser um problema para ele, e ele limitava-se a se relacionar com suas esposas ou parceiros cuidadosamente selecionados.
É algo que sempre havia lhe intrigado sobre a humanidade. Como eles pensavam em sexo o tempo todo. Todas as noites, um terço do sonhar estava preenchido com as fantasias mais sujas possíveis, e não era incomum que Íncubos invadissem seu reino para atormentar os sonhadores.
Agora, ele entendia essa necessidade.
Ele se descobria constantemente arrepiado com o toque de Hob, com um olhar prolongado, com o modo como ele mordia os lábios ao se concentrar, ou quando saía do banho com uma toalha amarrada na cintura. Sentia-se um adolescente no auge da puberdade.
E para sua frustração, agora não bastava apenas estalar os dedos para fazer suas ereções desaparecerem. Elas eram persistentes, dolorosas até.
Ele já havia se tocado. Algumas vezes. O suficiente para compreender o novo corpo. Mas nunca era o bastante. Não quando Hob estava tão perto. Não quando ele dormia a poucos centímetros de distância e ainda parecia hesitar em tocá-lo.
Naquela noite, Morpheus terminava mais um capítulo do livro que vinha escrevendo. Um romance. Estranhamente pessoal.
Ele terminou o rascunho e destacou as folhas da máquina de escrever, esgueirando-se para a cozinha logo depois, onde Hob estava cortando legumes enquanto uma panela chiava no fogão.
Morpheus encostou-se à porta, em silêncio, observando-o, hipnotizado pela maneira como os músculos de seus braços se moviam a cada corte, como os ombros largos se esticavam sob a camisa fina, como a pele bronzeada suava pelo calor que fazia na cozinha.
Hob notou sua presença, mas não se virou.
— Como está o livro? — perguntou ele, sem tirar os olhos da tábua de corte.
— Quase pronto.
— Sobre o que é este?
— Um romance.
Hob parou. Largou a faca e se virou, interessado, com um sorriso enviesado.
— Ah, é?
— Sim. É sobre um... deus, que se apaixona por um homem imortal.
Hob sorri, os olhos brilhando carinhosamente.
— Eles ficam juntos no final?
Morpheus hesita por um momento, como se a resposta ainda estivesse se moldando dentro de si.
— Sim.
Hob cruza a cozinha e o beija com ternura. Mas, quando os lábios de Morpheus buscam mais, aprofundando o gesto, e ele sente Hob hesitar.
— Você tem evitado me tocar — a voz de Morpheus é fria. — E eu... não gosto de ser rejeitado.
— Ei — Hob sussurrou, tocando seu rosto. — Não é isso. Só… você passou por tantas coisas. E parecia tão ocupado, aprendendo a ser humano. Achei que talvez quisesse ir devagar.
Morpheus ergue uma das mãos e acaricia suavemente a nuca de seu amante, afundando os dedos entre o cabelo curto, puxando-o para perto.
— Não quero ir devagar.
E o beija de novo. Hob corresponde sua intensidade dessa vez. Suas mãos subem pela cintura estreita, escorregando para dentro de sua camisa.
Os lábios de Morpheus estavam quentes, e sua pele parecia absorver cada toque como se fosse a primeira vez. Hob desliza as mãos por suas costas até agarrar seus quadris, erguendo-o levemente e o colocando sentado sobre a bancada de mármore.
Morpheus, que usava apenas um roupão de cetim preto, arfa ao sentir o mármore frio contra a pele. Suas pernas se fecham ao redor da cintura de Hob, prendendo-o.
Então, eles ouvem o som agudo da panela borbulhando, o chiado do líquido ameaçando transbordar. Hob afasta seus lábios dos dele com relutância, ofegante.
— O jantar...
— Depois. Eu preciso disso. Agora.
Não é um pedido. É uma ordem.
Hob se afasta apenas o suficiente para alcançar o fogão e desligar o fogo.
Depois volta-se para Morpheus, que ainda estava sentado na bancada, observando-o com olhos escurecidos pela urgência.
No quarto, a cama os acolhe com um rangido discreto. Morpheus cai entre os travesseiros.
Hob permanece de pé por um instante, observando-o. Os lábios vermelhos, o peito subindo e descendo depressa, as pernas entreabertas esperando por ele.
Deus, há quanto tempo ele estava esperando por isso?
Hob sobe sobre ele, apoiando as mãos ao lado de suas coxas.
— Este corpo já me ensinou muitas coisas — Morpheus murmura. — Como é sentir calor, frio, dor. Eu quero saber quanto prazer ele é capaz de me proporcionar.
— O que quer que eu faça?
— Beije-me.
E Hob obedece. Delicadamente, leva uma das pernas de Morpheus até seus ombros, beijando seus tornozelos. Depois, a curva atrás dos joelhos, e então subindo para a parte interna de suas coxas, sem pressa, sentindo os músculos se contraírem sob seus lábios. Morpheus sustenta o olhar o tempo todo, sentindo-se mais duro à cada toque.
Ele beija seu abdômen, subindo devagar, apertando a lateral de sua cintura. As mãos pálidas de Morpheus se agarraram aos cabelos castanhos.
Quando os lábios de Hob alcançam seu peito, ele solta um gemido contido — um som rouco, envergonhado, que escapa antes que ele possa reprimi-lo.
— Não precisa se conter — Hob sussurra entre um beijo e outro. — Pode me mostrar o que está sentindo.
E então ele lambe seu pescoço, devagar, com a ponta da língua traçando caminhos indistintos, sentindo os pequenos tremores que cada toque causava.
Morpheus inclina a cabeça para o lado, oferecendo mais. Os dedos longos puxam a camisa de Hob com uma urgência muda, e ele se livra dela rapidamente, junto com o restante das roupas. Também não é necessário muito esforço para desfazer o nó frouxo do roupão de cetim. Em segundos, os dois estão completamente expostos, pele contra pele.
Hob volta a beijá-lo, pressionando-se contra o corpo esguio de Morpheus, deixando marcas onde seus lábios tocavam. Pequenas galáxias roxas e vermelhas começavam a surgir em sua pele leitosa. Ele não se curava automaticamente agora — e aquilo, para Hob, era quase sagrado.
Morpheus geme novamente, mais alto desta vez, e o som é como uma súplica embriagada.
— Agora... Por favor, Hob. Eu preciso de você.
Mas Hob não o atende de imediato.
Com cuidado, se afasta só o suficiente para esticar o braço até a mesa de cabeceira. O som da tampa do frasco de lubrificante sendo girada ecoa baixo pelo quarto silencioso.
Morpheus observa tudo com olhos escurecidos, as pupilas dilatadas, a respiração pesada.
Hob se posiciona entre suas pernas e derrama o líquido frio sobre a palma das mãos. Com uma delas, envolve o sexo de Morpheus, espalhando o gel devagar ao redor de seu comprimento. A sensação escorregadia e gelada o faz estremecer.
Morpheus solta um suspiro trêmulo, a respiração falhando ao sentir os dedos firmes de Hob se moverem sobre ele.
A outra mão traça um caminho ousado. Hob desliza os dedos até a entrada de Morpheus, tocando-o ali com delicadeza, antes de introduzir um dedo com cuidado.
O corpo de Morpheus responde na mesma hora, um gemido rasgado escapando de seus lábios. Era como se já estivesse esperando por aquilo, faminto por qualquer fricção que aliviasse a tensão acumulada.
— Ah... — ele geme, os quadris se movendo por conta própria, buscando mais.
Era uma dor doce. Aguda. Mas ele não queria que parasse.
Hob movia o dedo devagar, com atenção, assistindo cada reação como se estivesse estudando um mapa sagrado. O lubrificante se espalhava por dentro com os movimentos suaves, e logo ele adicionou um segundo dedo.
O corpo de Morpheus se apertou ao redor deles, e o gemido que escapou foi mais alto. Seus olhos entreabertos estavam desfocados, a boca entreaberta, úmida.
— Me fode, Hob — suplicou, a voz trêmula. — Por favor...
Hob se inclinou, mordiscando seu pescoço com os dentes e a língua.
— Relaxe um pouco — ele pede, a voz grave, controlada, mas cheia de desejo. — Preciso preparar você primeiro.
Os dedos se movem com mais intensidade agora, mais fundo, buscando o ponto exato dentro dele. Quando encontrava, Morpheus gritava, os quadris se movendo com desespero, buscando mais contato.
A outra mão de Hob continuava no ritmo certo, apertando seu pau, deslizando para cima e para baixo.
Morpheus gemeu alto, os músculos das coxas tremendo, o corpo inteiro vibrando como uma corda esticada demais.
O primeiro orgasmo o atravessou como um incêndio.
Ele arqueou o corpo, gemendo o nome de Hob, as mãos se agarrando aos lençóis, as pernas tremendo com cada pulso de prazer.
A respiração era curta, quebrada. O peito subia e descia como se tivesse corrido uma maratona.
Mas mesmo assim, mesmo depois do clímax, o corpo dele continuava rígido, pulsante, faminto.
Os olhos de Morpheus se abriram, negros e brilhantes, e se voltaram para Hob, acima dele.
O suor fazia a pele dele brilhar sob a luz fraca. O peito arfava, marcado por cicatrizes que o tempo esqueceu de apagar.
Ele ainda queria mais.
Ele queria continuar. Queria dar tudo de volta. Queria ver Hob explodir de prazer como ele acabara de fazer.
Quando ainda era um Perpétuo, Morpheus podia ler seus devaneios, entender cada desejo oculto de seu homem sem precisar de palavras. Podia dar a Hob exatamente o que ele queria.
Mas aquele corpo novo, aquele Morpheus vivo, não tinha mais esse dom. Agora precisava de outra coisa: precisava ouvir. Precisava que Hob dissesse.
— É a sua vez agora. — ele diz assim que recupera o fôlego. — O que quer fazer?
Hob sorri, lento, quase malicioso.
— Senta no meu rosto.
Ele mal acreditava que aquelas palavras tinham saído da sua boca — tão direto, tão nu em seu desejo.
— Quero ver como você fica quando eu te provo.
Morpheus o encarou por um instante, surpreso com a ousadia do pedido — e com o efeito imediato que ele causou em seu corpo.
Sem dizer uma palavra, ele se moveu, lentamente. Suas coxas ainda tremiam levemente, mas ele se ajeitou sobre Hob, que já havia se deitado de costas entre os travesseiros.
Hob o recebeu com as mãos firmes em seus quadris, guiando-o com cuidado, até que Morpheus se ajoelhou sobre seu peito, e então subiu um pouco mais, até parar sobre o rosto dele.
Podia sentir o calor da respiração dele, e a barba roçando sua virilha, o olhar faminto que o seguia mesmo antes de o toque começar.
— Assim? — sussurrou Morpheus, os olhos baixos, a voz quebrada.
— Mais perto — murmurou Hob, e logo em seguida a língua quente e úmida tocou sua pele.
Morpheus arfou, os quadris descendo quase por reflexo. Hob não esperou — envolveu-o com a boca e começou a devorá-lo sem hesitação.
O gosto de Morpheus era salgado e doce, uma mistura única, viciante. Hob chupava com vontade, como se estivesse sendo alimentado depois de dias de fome.
E, de certo modo, estava.
O prazer era imediato. Molhado, quente, contínuo.
Morpheus gemeu alto, jogando a cabeça para trás. Ele se movia devagar, instintivamente, fodendo a boca de Hob. Ele sentia cada deslizar da língua, cada sucção, cada estocada fazia seu corpo tremer.
Ver Morpheus reagir daquele jeito, perdendo o controle sobre si mesmo — aquilo fazia o próprio corpo de Hob pulsar. Ele sentia o pau duro contra os lençóis, doendo, latejando com cada gemido que o outro soltava. Implorando para ser tocado.
Mas ele não parava.
Hob conhecia muito bem o seu estranho. Sabia que ele gostava de estar no comando, de ser venerado. E seu prazer era serví-lo.
Seus dedos se cravavam na bunda de Morpheus, puxando-o para mais perto, mais fundo. Sua língua dançava em círculos, depois sugava com força — e cada reação era uma recompensa.
— Merda… Hob… — Morpheus gemeu, as mãos se apoiando na cabeceira da cama para manter o equilíbrio.
Hob apenas grunhiu contra sua pele, a vibração reverberando direto em seus nervos.
Morpheus passou a se mover com mais urgência. Podia sentir a língua dele se enterrar, deslizar, traçar círculos lentos antes de chupar com força de novo. Cada movimento fazia seus músculos se contrairem, o prazer se acumulando rapidamente.
Ele se segurou nos travesseiros, depois na cabeceira, depois nas coxas de Hob — qualquer coisa para se manter ancorado à realidade. Mas era difícil.
Hob gemia também, abafado, preso entre suas coxas. O cheiro, o gosto, os sons de Morpheus — tudo o deixava à beira de perder o controle. Ele continuava enterrando em sua garganta sem piedade, fazendo-o engasgar. Mas ser enforcado como bruxo o havia ensinado a suportar a sensação de asfixia. Para falar a verdade, ele até gostava.
— Eu vou... — Morpheus tentou avisar, mas não conseguiu terminar a frase.
O segundo orgasmo deixou-o tremendo violentamente enquanto sua visão escurecia nas bordas. O corpo se dobrou para a frente, os joelhos falhando, o prazer disparando pela espinha feito um raio.
Ainda sentia a boca de Hob o envolvendo, lambendo-o com firmeza, engolindo tudo até que o último espasmo cessasse.
Quando se afastou por fim, deslizando para o lado como se cada osso estivesse derretido, caiu nos lençóis com um suspiro longo e trêmulo.
Ele estava um caos. Sua mente completamente entorpecida, como se sob o efeito de alguma droga.
— Você quer continuar? — Hob pergunta, a voz baixa, rouca pelo esforço.
— Sim. — Morpheus respira fundo. — Mas talvez precise de alguns minutos.
Hob ri, e o som é quente, carinhoso.
Ele não se importa de esperar.
A paciência é a maior virtude de um homem imortal.
— Você é muito bom nisso — diz Morpheus, ainda ofegante, os olhos semicerrados.
— Tive 650 anos para praticar.
Hob se levanta e vai até a cozinha. Retorna com um copo d'água e o entrega com um sorriso suave.
Morpheus bebe em silêncio, os dedos ainda trêmulos ao redor do copo.
— Quando se recuperar... — Hob diz, inclinando-se para sussurrar ao seu ouvido — eu te mostro para que servem as algemas.
Chapter 9: Sonhar
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O quarto ainda estava escuro, mas Morpheus já não percebia o mundo com os sentidos do corpo. Ele dormia. E, ao dormir, sonhava — como todos os mortais.
Mas seus sonhos não eram comuns.
Ele caminhava por um campo sem cor. O céu acima não era mais que fumaça. À sua frente, uma árvore seca, onde o vento soprava notas longas de uma melodia desconhecida. Um jovem se sentava sob ela, de cabeça baixa.
Orfeu.
Seu filho o olhou. Os olhos estavam vazios. A lira em suas mãos se desmanchava em poeira a cada tentativa de tocar.
Morpheus tentou se aproximar. Queria abraçá-lo. Pedir perdão. Dizer que sentia sua falta.
Ele tentava falar, mas sua garganta estava costurada com fios de prata. A terra sob seus pés se partia, e, dos fragmentos, surgiam rostos que ele conhecia — Nada, Calliope, seus irmãos, todos o encarando com olhos que o condenavam silenciosamente.
E então ele despertou. Com o coração tentando saltar para fora do peito. Hob ainda dormia ao seu lado, enroscado em seus cobertores, cabelos bagunçados e um dos braços jogado sobre ele com naturalidade.
Aos poucos, sua respiração se estabilizou.
Foi só um pesadelo. Ele pensou.
E voltou à dormir.
Morpheus sonhou outra vez.
E dessa vez, o Sonhar o reconheceu.
As fronteiras entre o mundo onírico e sua nova existência não eram mais barreiras. Ele andava entre as paisagens familiares como um estranho querido.
Deixou que seus pés o guiassem. E quando percebeu, estava na biblioteca do castelo que um dia fora o seu lar.
E no centro dela, entre as prateleiras espiraladas e corredores infinitos, estava Lucienne.
Ela segurava um livro. A capa era azul-escura, bordada com traços dourados. Quando ela virou, havia uma emoção contida no seu rosto — e algo no modo como segurava aquele volume lembrava um reencontro há muito aguardado.
— Contos do Reino dos Sonhos, — disse ela, com a voz suave. — Ele apareceu aqui há alguns dias.
Morpheus aproximou-se. Observando como o livro parecia ter vida própria, vibrando nas mãos da bibliotecária.
— Eu soube que estava vivo antes mesmo que Daniel pudesse me contar. Os livros nascem aqui primeiro. E este... — ela suspirou brevemente — este tem a sua alma, senhor. Cada linha. Cada palavra.
Ele olhou para o livro como se fosse um espelho.
— Os outros sabem? — perguntou, finalmente.
Lucienne balançou a cabeça.
— Daniel está tentando manter segredo. Talvez tema te expor antes da hora certa. Ou talvez ache que está te protegendo. Mas… é difícil esconder uma estrela, mestre.
Ele não corrigiu o título. Havia algo reconfortante naquela devoção silenciosa. Algo que lhe faltava.
Lucienne, então, sorriu.
— Senti sua falta, senhor.
A névoa que envolvia o Sonhar começava a se dissipar quando Lucienne e Morpheus atravessaram os arcos de jade da antiga ponte. A água abaixo refletia constelações que ainda não haviam nascido, e o som era o de páginas virando ao vento.
Lucienne caminhava com as mãos cruzadas às costas, vestida com um traje elegante de linho escuro, com detalhes dourados que simbolizavam sua nova posição.
— A biblioteca permanece, é claro — disse ela, lançando-lhe um olhar suave. — Mas agora pertenço ao conselho dos arcanos. Daniel me nomeou Primeira Ministra do Sonhar.
Morpheus assentiu levemente, sem surpresa, mas com admiração genuína.
— Sempre houve grandeza em você, Lucienne.
Ela sorriu com certa tristeza.
— Você confiava mais em mim do que em si mesmo, às vezes.
— Ainda confio — respondeu ele, a voz tão serena quanto a superfície do rio.
Caminharam em silêncio por um momento, observando os sonhos ganharem forma nas margens distantes: castelos flutuantes, florestas cantantes, criaturas feitas de poeira estelar.
— Tem notícias dos meus irmãos e irmãs? Estão sendo bons com o Daniel? — perguntou Morpheus.
— Ele se dá bem com a maioria deles. É um garoto... Digo, um homem muito querido.
— E o Coríntio?
Lucienne soltou uma risada leve.
— Está sempre perambulando pelo mundo desperto. Anda acompanhado de uma certa senhora Constantine. Um casal improvável... e aterrorizante, mas curiosamente eficaz.
Morpheus sorriu e desviou o olhar para o céu sobre eles, onde dragões celestes brincavam com o vento.
— O Sonhar mudou. Mais do que imaginei.
— E ainda assim, ele o acolhe como a um filho pródigo.
Pararam no centro da ponte. Lucienne virou-se para ele, os olhos brilhando com um afeto discreto.
Quando os primeiros sinais da manhã começaram a brilhar no horizonte, Lucienne deu um passo para trás.
— Já está quase na hora de acordar.
Morpheus olhou para a margem distante, onde a imagem do castelo começava a se desfazer.
Lucienne sorriu uma última vez.
— Venha me visitar no mundo desperto, Lucienne.
— Em breve, senhor.
Então, sua figura se desfez, como areia que escorre entre os dedos.
Quando acordou, Morpheus sentiu o peso leve e familiar de garras pousando em seu peito.
Ao abrir os olhos, encontrou uma ave muito familiar, os olhos vítreos pareciam querer perfurá-lo.
— Finalmente! — disse o corvo, batendo as asas. — Você está mesmo vivo? Ah, eu vou pegar aquele pirralho! Como ousa trazer você de volta e não me contar nada?
Ele grasnou, raivoso.
Morpheus suspirou, ainda sonolento. E um raro, quase imperceptível riso brincou em seus lábios.
— Bom dia, Matthew.
Ele acariciou as penas negras do animal, que inflou as asas levemente, mas logo cedeu ao carinho.
— Bom dia, chefe.
Matthew voa para os pés da cama, agitando as penas com impaciência.
— Sério, chefe. Nada contra o Daniel, ele é um bom garoto... mas custava ter me avisado? Achei que estava sonhando quando senti sua presença. Acordei e puf, corri pra cá.
Morpheus o olhava com uma calma que beirava o silêncio absoluto. A manhã entrava suave pelas janelas, tingindo de dourado o chão de madeira.
— Nem tudo precisa ser dito. Algumas verdades se revelam por si mesmas.
O corvo bufou, ou fez o equivalente aviário de bufar.
— Filosofia às seis da manhã. Eu devia ter ficado no Sonhar.
Atrás deles, um som de lençol se movendo quebrou a quietude. Hob ergueu a cabeça do travesseiro, piscando com esforço.
— Vocês dois vão ficar tagarelando a manhã toda?
Sua voz estava arrastada de sono. Os cabelos despenteados caindo sobre os olhos.
— Bom dia pra você também — disse Matthew, com sarcasmo.
Hob gemeu, virou-se de lado no colchão e cobriu os olhos com o antebraço.
Morpheus permaneceu em silêncio, observando os dois. Por um momento, deixou-se envolver por aquela cena tão incomum — e, no entanto, tão estranhamente familiar.
Matthew pigarreou.
— Enfim... já que o casal acordou, eu vou nessa. Só vim checar se o universo ainda estava no lugar. Até mais, pessoal.
Ele bateu as asas, como se fosse partir — mas então hesitou. Em vez de seguir para a janela, voou até o ombro de Morpheus.
O gesto foi surpreendentemente suave.
Matthew pousou com leveza, se ajeitando com um pequeno salto, e, por um breve instante, encaixou a cabeça entre o pescoço e o queixo de Morpheus. Quase um abraço, do jeito que um corvo saberia dar.
Morpheus permaneceu imóvel, mas seus olhos se fecharam por um segundo.
— Bem-vindo de volta — murmurou Matthew, num tom mais baixo, mais sério. — Mesmo.
Então se afastou, alçando voo com um bater de asas discreto, e desapareceu pela janela entreaberta.
Chapter 10: Velhos Amigos
Chapter Text
Perto das cinco da tarde, Hob retornou de mais um dia exaustivo na universidade e parou no hall do New Inn Apartments para checar a correspondência. Entre contas, panfletos e um catálogo de supermercado, um envelope chique chamou sua atenção.
Ao ler o destinatário, sentiu o coração dar um salto involuntário: M. E. Gadling.
Hob ficou parado por um momento, um sorriso ligeiro brincando em seus lábios ao pensar que Morpheus havia utilizado o seu sobrenome para assinar alguma coisa.
No apartamento, o encontrou sentado à mesa, oferecendo pequenos pedaços de pão para Matthew, que bicava com entusiasmo.
— Você está engordando esse corvo — comentou Hob, largando o envelope sobre o balcão junto com o resto da correspondência.
— Você acha? — Morpheus o olhou, genuinamente pensativo, como se fosse incapaz de avaliar parâmetros físicos de uma ave.
— Ei, eu estou ouvindo vocês! — resmungou Matthew, engolindo mais um pedaço.
— Carta pra você — disse Hob, empurrando o envelope na direção dele. — E, devo dizer, muito oficial.
Morpheus abriu com o mesmo cuidado que tocava qualquer coisa desconhecida, como se pudesse explodir a qualquer momento. De dentro, retirou um papel encorpado, com o brasão dourado da editora no topo.
— “Temos o prazer de convidá-lo para a celebração do sucesso de sua obra ‘Contos do Reino dos Sonhos’... coquetel e jantar de gala... traje formal...” — leu a última parte em voz baixa, como se as palavras tivessem gosto amargo.
— Então é isso — Hob se apoiou no balcão. — Sua primeira grande festa literária.
— Não vejo propósito em festividades desse tipo — replicou Morpheus, dobrando a carta com precisão. — Barulho. Luzes. Pessoas… falando demais.
— Voce não vai?
Ele não respondeu, mas Hob percebeu o ligeiro tensionar nos ombros.
Contos do Reino dos Sonhos havia sido publicado há pouco mais de um mês, e o sucesso fora estrondoso. O que por um lado, era bom, já que o dinheiro era bem vindo, mas por outro lado, Morpheus estava realmente tentando se manter anônimo.
Esse tipo de exposição é desnecessária. Concluiu ele.
Mas, ainda assim, durante os dias que se seguiram, algo parecia mudar. Talvez fosse o fato de que, todas as manhãs, novas cartas apareciam embaixo da porta: elogios, pedidos, histórias pessoais de leitores que haviam sonhado com os cenários descritos no livro, desenhos feitos à mão das criaturas que ele havia criado.
Morpheus não dizia nada, mas guardava cada carta.
No quarto dia, Hob o encontrou à mesa, escrevendo em seu caderno. Matthew, que havia se tornado uma visita recorrente, estava empuleirado no parapeito da janela, esperando. Ao lado, três envelopes aguardavam selos. Em nenhum deles havia um destinatário, apenas símbolos, sigilos que Hob não conhecia. Uma cruz de Ankh, um tipo de pentagrama, e algo parecido com um triângulo com duas pernas.
— Então você vai à festa — constatou Hob, inclinando-se para ver o que ele escrevia.
— Sim. É… adequado. — Ele fez uma pausa, olhando para o endereço do primeiro convite. — E será útil reencontrar velhos conhecidos.
Ao finalizar, entregou as cartas à Matthew, que alçoou voo noite adentro.
*
Morpheus não gostava de festas. Nem de luzes artificiais demais, nem de música alta, nem de convívio social em excesso. Ainda assim, ali estava ele: no banco do passageiro de um automóvel luxuoso, vestindo um terno vermelho recém-comprado, franzindo o cenho para o próprio reflexo no vidro escurecido da janela.
— A editora acha que você é um gênio misterioso — Hob diz suavemente, com uma taça de vinho branco na mão. — O mínimo que você pode fazer é aparecer por trinta minutos e deixar todo mundo te bajular um pouco.
— Gênios não participam de festas. Eles escrevem. — Morpheus murmurou. — Ou sofrem em silêncio.
— Você pode sofrer depois. Hoje é sua noite.
A editora havia alugado o salão de um hotel elegante em Soho. Nas mesas, exemplares de Contos do Reino dos Sonhos dividiam espaço com taças de espumante e arranjos de flores secas.
Os convidados conversavam animadamente. Jornalistas, acadêmicos, fotógrafos, escritores, e alguns fãs, dispostos a pagar centenas de libras para comparecer ao evento.
No instante em que Morpheus cruzou a entrada, a conversa pareceu rarear.
— É ele… — alguém cochichou.
— O autor… — outra voz respondeu.
Hob, acostumado a ver Morpheus ignorar olhares curiosos, reparou que dessa vez ele não parecia exatamente incomodado.
Champanhe foi oferecido, cumprimentos foram trocados. Livros foram assinados. Morpheus manteve respostas curtas, polidas, mas cada vez que alguém o elogiava, seus olhos fugiam para algum ponto distante — um gesto quase imperceptível, mas que Hob aprendeu a decifrar como tédio contido.
A primeira hora correu sem incidentes, até que um silêncio curioso se formou na entrada do salão.
Um homem — alto, de cabelos loiros quase brancos, pele pálida e sorriso perfeito — atravessou o espaço como se o mundo tivesse a obrigação de parar para observá-lo. O terno preto caía sobre ele como uma segunda pele, e seus olhos claros possuíam um brilho penetrante.
— Lúcifer Morningstar… — murmurou alguém perto de Hob. — O dono do Lux, em Los Angeles… o que ele está fazendo aqui?
Lúcifer Morningstar? Tipo... O diabo em pessoa?
Morpheus virou-se antes mesmo que o convidado chegasse perto, como se tivesse sentido sua presença.
— Senhor dos sonhos — disse Lúcifer, com a voz baixa e aveludada, curvando-se para beijar a mão dele. — Há quanto tempo.
— Tempo é relativo — respondeu ele. — E é apenas Morpheus agora. Fico feliz que tenha vindo, Estrela Da Manhã.
— Eu não perderia por nada.
Hob ficou parado ao lado, tentando não parecer deslocado, mas sentindo-se cada vez mais como espectador de uma peça cujo enredo desconhecia.
Lúcifer se inclinou levemente para falar algo que Hob não conseguiu ouvir, e a resposta de Morpheus veio acompanhada de um sorriso.
O diálogo entre eles fluía com uma certa... intimidade. Não como velhos amigos, mas como cúmplices que haviam dividido segredos perigosos. Hob percebeu que não conseguia decidir o que o incomodava mais: o fato de Morpheus sorrir daquela forma, ou o fato de não saber por quê.
Lúcifer, em algum momento, desviou o olhar para Hob, avaliando-o como quem examina uma peça curiosa.
— E este? — perguntou, o sorriso afiado. — Um novo amigo?
— Hob Gadling — disse Morpheus, antes que Hob pudesse falar. — Ele é meu parceiro.
Hob sentiu o peso daquelas palavras — e o modo como Lúcifer arqueou uma sobrancelha, como se tivesse acabado de ouvir algo particularmente interessante.
A orquestra mudou para uma melodia mais lenta e sombria.
— É claro, o homem imortal. Já ouvi falar de você, querido Hob.
Lúcifer estendeu uma mão, e Hob o cumprimentou. O aperto foi firme. Um brilho avermelhado surgiu nos olhos dele, e Hob sentiu um arrepio percorrer a espinha.
— Domesticar o rei dos sonhos não é uma tarefa para qualquer um.
Morpheus lançou um olhar glacial para Lúcifer, que apenas riu.
O salão parecia girar lentamente ao redor de Hob. As risadas, o tilintar dos copos, o perfume caro que se misturava ao cheiro de flores secas… tudo se tornava ruído distante enquanto, à sua frente, Morpheus e Lúcifer conversavam como se fossem os únicos naquele lugar.
— Vejo que o mundo desperto finalmente o reivindicou — disse o demônio, a voz grave carregando um sorriso insinuante. — E está rendendo frutos, pelo visto. “Contos do Reino dos Sonhos”... um título digno.
— Foi um projeto necessário. Mas o mérito, talvez, seja mais do mundo desperto do que meu.
— Ah, doce Morpheus. Você sempre foi modesto. — Lúcifer inclinou a cabeça, os olhos faiscando com algo que Hob não sabia decifrar. — Ainda usa aquelas metáforas indecifráveis para despistar as pessoas?
— Apenas quando necessário.
A troca de olhares entre eles tinha um peso próprio, uma história silenciosa que parecia atravessar séculos. Hob observava, e se perguntava quantas vezes Morpheus já havia olhado para alguém daquela forma. Talvez nunca.
Então, uma das portas laterais do salão se abriu, e Johanna Constantine entrou, atravessando o salão com passos firmes.
Os olhos da festa se voltaram para ela, enquanto seu sorriso se espalhava como um convite a confusões.
— O diabo, um rei, um imortal e uma bruxa entram num bar — ela diz, aproximando-se. — Qual será o assunto da noite?
Lúcifer virou-se, e a atenção dele se desviou de Morpheus como se uma nova presa tivesse surgido. Conversaram rapidamente, e, naquele instante, Hob sentiu que o ar voltava aos seus pulmões.
Morpheus, percebendo o desconforto, tocou o braço de Hob.
— Vamos tomar um pouco de ar.
Na varanda, o vento frio da noite os envolveu, afastando o calor sufocante do salão.
— Então… — Hob começou, apoiando-se no parapeito. — Você e Lúcifer. Há quanto tempo se conhecem?
Morpheus ficou em silêncio por alguns segundos, observando a cidade lá embaixo como se calculasse o peso da resposta.
— Desde antes de o mundo ter esta forma.
— Isso é… um jeito poético de dizer “faz tempo”? — Hob tentou rir, mas o tom soou mais nervoso do que pretendia.
— É um jeito honesto — disse Morpheus. — Lúcifer e eu… compartilhamos uma história longa e complexa. Nem toda amizade é simples.
Hob assentiu, mas a expressão não escondia o incômodo.
— E vocês são… amigos? — a pergunta escapou antes que ele pudesse reformular.
Morpheus desviou o olhar para ele, sua expressão era um misto de curiosidade e confusão.
— Amigos… inimigos… aliados… adversários. Depende do momento.
Um vento frio passou, trazendo consigo o som distante de risos vindos do salão. Hob olhou para dentro, onde Constantine e Lúcifer ainda conversavam animadamente.
Morpheus o observou por alguns instantes. Depois, arqueou uma sobrancelha.
— Acha que Lúcifer e eu tenhamos sido mais que amigos, em algum momento?
Hob pigarreou.
— Eu… bem, quando se vive tempo o suficiente, você sempre sabe se duas pessoas já transaram.
Um canto do lábio de Morpheus se ergueu, como se a franqueza de Hob fosse ao mesmo tempo irritante e adorável.
— Bem. Você está certo. Mas isto foi há muitas eras. Antes mesmo que ele se rebelasse contra o criador.
Hob desviou o olhar para o horizonte.
— Está com ciúme, Hob? — a voz de Morpheus era suave, mas carregada de interesse genuíno.
— Bem, ele é o diabo, né? — Hob respondeu, meio emburrado. — E tem um metro e noventa, é bonito e rico…
Antes que pudesse continuar, Morpheus segurou seu rosto com ambas as mãos e se inclinou, olhando-o de tão perto que Hob podia sentir a respiração contra a pele.
— E você é Hob Gadling — disse, em tom baixo e seguro —, o único homem corajoso o suficiente para amar até mesmo as partes mais sombrias do meu ser.
Ele deslizou as mãos pelo rosto de Hob.
— Você tem olhos castanhos como as folhas que caem no outono e são beijadas pelo sol, e essas mãos calejadas de incontáveis batalhas, um sorriso tão amável e uma barba que faz cócegas quando beija o meu pescoço.
Ele manteve o olhar preso no de Hob, e concluiu:
— Não há ninguém como você. Nem mesmo o diabo poderia me fazer amá-lo menos.
Hob deixou escapar um riso contido, mas o coração ainda pesava com outra dúvida.
— Eu estava pensando, sabe… sobre o nosso relacionamento. Nós nunca definimos isso. Somos amigos? Colegas de quarto? Namorados? Quando eu vi você usar meu sobrenome eu pensei que talvez…
Antes que pudesse concluir, um sopro leve percorreu o ar. A temperatura caiu alguns graus. Quando Hob se virou, viu uma mulher vestida de preto. Observando-os com um olhar caloroso.
— Interrompi alguma coisa? — perguntou Morte, sorrindo de forma enigmática.
sdds_chan on Chapter 1 Sun 10 Aug 2025 11:51AM UTC
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