Chapter 1: Kakashi – Assombrado
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Kakashi
Eu começava a acreditar que estaria enlouquecendo.
Não era uma frase melodramática porque nunca fui esse tipo de pessoa, e sim uma afirmativa lancinante que me atormentava há mais tempo do que me recordava. Ainda pior que isso, essa dor escolheu o pior momento para se instalar.
Morando sozinho tem suas avarias. Você sempre sabe onde estão suas coisas, a menos que seja uma pessoa esquecida — o que não é totalmente o meu caso aqui. E, se for bem atento, notará quando um objeto seu está fora do lugar, ainda que por meio centímetro de diferença.
Dito isso, eu percebi quando meu porta retrato ficou meio centímetro para a esquerda na cabeceira da cama. A gaveta de objetos pessoais ligeiramente aberta. Pequenas mudanças, totalmente imperceptíveis para quem não era um ninja. Mas que, aos meus olhos, se tornavam um sinal de alerta.
As noites foram piores.
Sentado em minha cama confortável, eu seguia minha rotina tentando ler Jardim dos Amassos para relaxar, mas algo sempre puxava minha atenção do romance intenso. Eu olhava a janela aberta, a vista noturna de Konoha em descanso, nada que alertasse meus instintos de caçador.
A sensação persistia lá dentro. Eu sabia que alguém observava.
— Você está precisando de férias, amigo. — Asuma tirou a conclusão, os olhos semicerrados sobre a fumaça da churrasqueira. — Deveria descansar.
— Concordo. Excesso de trabalho é ruim para todos, até mesmo para os melhores. -—Por um milagre, Guy também concordou com um aceno exagerado. Houve hesitação da sua parte para continuar: — Eu sei que depois daquele dia, você tem estado diferente. É compreensível. Mas todos precisamos de um limite.
Um limite?
Eu quis rir disso, mas contive somente revirando os olhos. Limites serviam para aqueles que ainda tinham um pedaço de si naquele mundo. Não para aqueles que carregavam promessas quebradas e túmulos nas costas.
Completava um ano desde o falecimento de Minato e Kushina, o dia do nascimento de seu filho. Um ano que eu entrei em outro luto. Mais uma falha minha.
Os meninos — que insistiam naquela amizade que eu não queria — tentaram quebrar minha rotina de modo ingênuo, levando para a churrascaria onde tentaram me alegrar. Eles não sabiam. Nem poderia contar sobre os trabalhos noturnos, todo o sangue que eu limpava da lâmina e do uniforme antes do amanhecer, ou dos rostos que assombrava meus sonhos nas poucas horas de sono que eu tinha.
— Vocês acham que estou paranoico. — Encarei as carnes sobre a chapa quente, a gordura crepitando com estalos atrativos para consumo. Usei meu par de hashi para pegar o menor dos pedaços. — É isso? Não há outra opinião?
Assoprei a comida e fiz um movimento rápido e nada natural de colocar a comida na boca sem verem meu rosto. Tanto Guy quanto Asuma bufaram, frustrados por não conseguirem ver.
— Não há. Infelizmente, você já teve outras fases como essa. — Fases do luto, Asuma quis dizer. — Sabe do que eu acho que você precisa?
Fases. Como uma adolescente em fase de estilo. Era assim que ele via a minha situação? Não era como se eu me forçasse a passar por toda aquela dor.
— Tenho medo de saber. — Mastigava a carne mal passada. Eu já sabia o que seria. Péssima ideia.
— De uma namorada.
— De um treinamento!
A dupla se saiu com falas mal ensaiadas, criando uma desarmonia que até eu, tomado por desânimo, sentiu incredulidade diante da cena. Eles se encararam com estranheza. Guy de sobrancelhas arqueadas, Asuma expressando terror e nojo.
— Namoradas não irão resolver nada. — Aproveitei sua distração para beber do meu chá oolong, o gosto descendo amargo. Ajustei a máscara sobre meu nariz. — Não é porque você está desesperado por atenção feminina que eu tenha que trilhar esse mesmo caminho.
— Nossa, Kakashi. Desnecessário. — Ele cutucou sua carne bem passada na chapa, usando uma força desnecessária. — Nós temos boas intenções.
— Por isso recomendei o treinamento! — Guy engoliu um pedaço de carne sem mal mastigar. — Nada é melhor para limpar a alma do que suor e pesos! Garanto que estará melhor depois de fazermos uma corrida com as mãos ao redor da aldeia! Não aceito menos que dez voltas!
Senti preguiça só de imaginar todo o esforço e tempo que aquilo me custaria. Guy tinha ideias absurdas que me faziam repensar seriamente sobre nossa suposta parceria de rivalidade.
— Bom, já deu minha hora de ir. — Deixei o par de hashi na mesa, erguendo-me do assento antes que pudessem protestar. — Foi uma boa conversa, mas eu preciso descansar.
— Nós nem terminamos a conversa. — Asuma cruzou os braços.
— Nem as carnes... — Guy olhou para meu prato vazio, depois para mim, depois para o prato. — Quando comeu tudo?
— Agradeço pelo convite. — Dei as costas para a mesa. A máscara escondendo um pequeno sorriso. — Nos vemos na próxima.
Fui embora do restaurante antes que percebessem que não paguei minha parte da conta.
Mais tarde, no vestiário da sede da Anbu, me arrumei para mais uma noite de trabalhos. Arrumei o uniforme no corpo, o colete cinza justo ao corpo e a máscara fria da anbu sobre meu rosto. Parei diante do espelho na porta do armário, encarando o olho que não me pertencia — o Sharingan, tão vermelho e brilhante quanto uma joia de sangue.
Eu jurei que faria aquilo ser meu, no entanto, sentia que meu amigo estaria me julgando através daquela arma ocular com o qual me presenteou — julgando meus erros por estragar nossa família, deixar Rin morrer e não estar presente para ajudar nosso sensei.
O maldito dia em que Minato me deu folga.
Depois disso, não parei mais. Se eu fizesse, ficaria pensando nesses malditos erros, nas lembranças que me despertavam na madrugada, as ilusões que tinha com meus entes queridos. Portanto, se eu não estivesse lendo, eu estaria trabalhando.
— Atenção, todos. — A presença do nosso líder nos fez parar. Tinha um pergaminho lacrado na mão. — Ninjas inimigos foram vistos se infiltrando na floresta da nossa aldeia, ao sul. Aparentemente sendo da Nuvem. Quero duas equipes para interceptá-los. Eis aqui os nomes para essa missão...
Dentre os nomes ditos, o meu foi pronunciado sem surpresa. Se tornou rotineiro ter sempre meu nome em alguma missão noturna.
Em questão de segundos nós já estávamos a caminho do local indicado, prontos para capturar ou matar. Oito silhuetas negras saltando pelas sombras através de galhos de árvores gigantes, transformando a noite em sua maior arma.
Eu avaliava ao nosso redor, registrando um mínimo movimento das árvores, o som de uma coruja piando, o frescor da madrugada com cheiro de musgo.
Percebendo que seus rastros estavam ficando mais frescos, ergui o punho em sinal de parada. Pousei na grama, os outros sete ninjas surgindo ao meu redor. Toquei o rastro recente na terra.
— Estão perto.
Ergui quatro dedos, apontando para os quatro ninjas à minha esquerda e depois para o nordeste. Eles entenderam imediatamente — flanquear pelo lado oposto. Os outros três seguiram-me quando me levantei, ajustando os capuzes sobre a cabeça.
Eu senti o cheiro da fogueira antes de sentir o autor do rastro. Em seguida, ouvimos seus murmúrios.
Ajoelhados na copa das árvores, assistimos ao grupo de seis ninjas da Nuvem reunidos em acampamento improvisado, cercados por equipamentos. No chão, um mapa da nossa aldeia esticado sobre a beira do riacho.
Um deles parou de repente, inspirando perplexo:
— Estão aqui!
Ao que parece, eles também tinham um ninja sensorial.
— Eles não vão muito longe. — Garanti isso.
O grupo inimigo se dispersou como formigas diante de um tamanduá. Sinalizei para nos separarmos, escolhendo o mais rápido do grupo para mim — um homem parrudo com bandana em formato de lenço cobrindo toda a cabeça.
Ele poderia ser rápido, mas eu era mais. Formei os selos e segurei meu pulso, concentrando o chakra na mão esquerda para criar o Chidori. O poder do jutsu estilhaça os galhos por onde eu saltava, seu som prenunciando o fim do ninja.
O ninja da Nuvem olhou para trás no exato momento em que surgi diante dele, meu braço atravessando seu peito em uma pressão que estalou seus ossos. Retirei-a antes que se desse conta da sua própria morte, deixando o corpo desabar onze metros até a grama onde seu sangue foi derramado.
Caí de pé ao lado do corpo, analisando o cadáver sobre a luz da lua que atravessava os galhos. Esperei sentir remorso, nojo, quem sabe, satisfação. Nada. Parecia que o Chidori teria sido para mim, e eu não passava de um corpo morto sem coração, vagando por aí.
Eu o senti de repente.
A ausência de insetos e vento foi o sinal de sua presença. Desembainhei a espada quando me virei.
Ele estava parado a nove metros de distância, tão imóvel que pensei ser uma ilusão da minha mente. O desconhecido tinha trajes completamente escuros, um cachecol verde que esvoaçava sem vento e sem uma bandana que me permitisse identificá-lo. Contudo, o que mais me preocupou foi sua máscara laranja, que cobria todo o rosto a não ser pelo olho direito.
Mesmo que eu não pudesse ver seu olho, sabia que me encarava.
— Identifique-se. — Rompi o silêncio. — Você me ouviu! Não vou falar de novo!
Avancei um passo, a lâmina tremendo levemente. Não por medo. Nunca era. E sim por ansiedade. Eu me livraria daquele pesadelo num instante.
Lentamente, ele inclinou sua cabeça para o lado como uma ave curiosa. Estaria caçoando de mim? Foi o bastante. Não teria problema em matá-lo, seria somente mais um corpo numa pilha.
Eu corri na sua direção. Meu ataque foi perfeito — um golpe diagonal que deveria ter partido seu tronco em dois. A lâmina passou direto. Não senti nada sólido. Pensei rápido e lancei o golpe na sua cabeça. Novamente não acertando nada.
Ele virou a cabeça para mim e eu fiz um salto para trás. Nunca tinha visto um jutsu de intangibilidade. Seu pé virou em minha direção, ameaçando dar seu primeiro golpe. Eu me preparei.
— É o que você quer? Me matar?! — Elevei o tom de voz, cansado daquilo. — Então venha! Veremos quem ganha!
Nenhuma resposta.
Mas ele começou a sumir. Seus pés deixaram o chão como um fantasma, a cabeça sumindo, depois passando os ombros, o tronco...
— Não! — Lancei um trio de kunais enroladas em papéis bomba. Elas atravessaram seu corpo fantasmagórico e explodiram contra uma árvore.
Seus pés foram a última coisa que vi antes de sumir na fumaça.
— Senhor.
Empunhei a espada contra o caçador que surgiu atrás de mim. Ele recuou por reflexo, notavelmente perplexo pelo meu ato.
— Nós capturamos todos os seis.
— Todos os seis? — Percebi que ofegava, apesar de ser discreto. Não queria que pensassem que eu enlouqueci.
Meus olhos voltaram ao local onde o estranho estivera. A grama não estava nem amassada.
— Contando com o que você pegou, sim.
O cadáver permanecia no mesmo local. Seis corpos exatos. Seis alvos neutralizados.
— Algo errado? — O caçador percebeu a árvore atingida.
— Nada. — Eu deveria me recuperar. Guardei a espada nas costas. — Vamos prosseguir.
Não foi uma falha minha. Minha missão foi perfeita como em todas as outras.
Enquanto seguíamos de volta para a sede, carregando o cadáver, senti a mão do Chidori formigar. Questionava se o que vi foi real.
E o pior, eu torcia para que fosse real.
◇◇◇
Mais uma vez, meus supostos colegas me encararam como se eu tivesse perdido o último vestígio de sanidade. Somente lhes contei o essencial, acredite.
— Vocês vão ficar me olhando assim a noite inteira? — Meus punhos bateram na mesa com força suficiente para fazer os copos saltarem, o líquido derramando sobre a madeira encerada. A raiva subia e sabia que parte disso era culpa do cansaço. — Porra! Depois me perguntam por que não conto nada!
Asuma ergueu as mãos em sinal de pacificação, o palito de pirulito pendurado nos lábios. Ele manteve a calma.
— Não é um julgamento. Eu posso acreditar. Hoje em dia as pessoas fazem todo tipo de jutsu.
— Exato. Não é como se você estivesse alucinando com coisas fora do lugar, para depois ver uma pessoa que nunca esteve lá. — Guy falou até demais. Sorriu, descendo o punho na mesa, usando a mesma força que eu. — Quer saber? Eu acredito em você, amigo! Te ajudo a pegar esse fantasma!
— Você acredita? — Asuma e eu questionamos, ele com ceticismo, eu com um misto de perplexidade e esperança.
— Acredito! — Ele ficou de pé, um brilho surgindo em seu rosto. — É a oportunidade perfeita para vermos quem é o melhor! Quem pega o fantasma primeiro, ganha!
Revirei os olhos tão forte que pensei ter visto meu cérebro. Não desejava tratar desse assunto de rivais naquele momento.
— É estúpido. — Comentei, levando meu copo para a boca.
— Sei não. Parece ser uma boa ideia. — Asuma segurou seu copo, removendo o pirulito da boca para beber. Aguardamos enquanto ele tomava deliberadamente lento, criando um suspense desnecessário. — Se você acha que tem algo ou alguém no seu apartamento, a gente acampa lá até quando você passar noites fora. Se tiver alguém, pegaremos.
— Não é se. Tem mesmo alguém. — Defendi.
— Então, topa? — Guy já parecia ter sua resposta. Se remexia em seu assento com a animação de um cão gigante.
Ter dois colegas no meu espaço pessoal? Péssima ideia. O único lugar que eu poderia ficar sem máscara, quieto com minha leitura.
— Não.
O rosto de Guy desmoronou como um castelo de cartas e ele largou o corpo sobre a mesa, deixando a cabeça bater e tremer os copos. Asuma, por outro lado, me encarava com desconfiança. Ignorei ambos, assim como ignorei suas falas desnecessárias sobre eu estar "paranóico" e "precisando de ajuda".
◇◇◇
Chegar em casa trazia o sentimento de entrar em outra dimensão. Bastava fechar a porta que o mundo se tornava silencioso. Meus pés descalços encontraram o carpete quentinho, porém levemente sujo de terra sem razão aparente.
Assim, fiz meu ritual.
Fiz uma análise minuciosa nos dois cômodos, centímetro por centímetro. O porta-retrato da minha antiga equipe, virado de modo bem perceptível. O travesseiro amassado levemente no lado direito, tão discreto que apenas alguém treinado para notar inconsistências perceberia.
Não era paranóia!
Eu farejei o ar como um cão, não detectando cheiro algum que já não fosse meu, como livros e shampoo.
— Não é paranóia... — Afirmei em sussurro.
Depois de fechar as cortinas decidi tomar banho sem a sensação de ser observado. A cama, outrora um refúgio, agora parecia uma armadilha. Meus olhos acompanhavam as palavras no livro, a mente distante daquele momento.
Asuma e Guy estariam certos? Seriam somente más impressões? Talvez eu tivesse passado tanto tempo na escuridão que agora ela começava a me consumir. Nem faria sentido ter alguém visitando meu apartamento.
Percebi que eu lia a mesma frase por muito tempo. Fechei o livro com um suspiro cansativo e larguei ele na cabeceira da cama. Descansar seria o melhor a se fazer.
Deitei, encarando o teto. Ergui minhas mãos diante dos olhos — as mãos que usei para assassinar tantas pessoas a sangue frio sem hesitação, sem remorso. Por mais que eu quisesse, não conseguia ter emoção nisso.
Nada. De novo.
O cansaço caiu sobre mim como uma onda pesada. Por mais que eu quisesse resistir, fui levado pelos meus pesadelos outra vez, no entanto, com algo diferente.
No breu do meu cômodo pequeno, uma movimentação suspeita surgiu ali. Decidi não dar importância para outro pesadelo, mesmo que ele estivesse se aproximando lentamente.
Chapter 2: Obito – Fascinação
Notes:
Atenção para o seguinte gatinho: tentativa de suicídio
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Eu nunca compreendi a fascinação que as pessoas tinham por ele.
Na academia, as meninas coravam quando ele passava, comemoravam durante seus treinamentos em aula. Nossos professores não escondiam o favoritismo por ele e estavam sempre o usando de exemplo para a turma. Nem os meninos escapavam disso, pois ao invés de odiá-lo por fazê-los parecerem burros, olhavam para ele com um misto de inveja e admiração.
É. Parte de mim entendia sim o motivo.
Mas, por trás daquela máscara irritante e da postura arrogante, eu sabia que tinha algo a mais. Um lado mais humano, que se revelava quando ele pensava que ninguém estava olhando. Algo em como ele gostava de descascar toda fruta com delicadeza, como passava mais tempo escolhendo livros do que lendo.
Por isso, fiquei muito feliz quando finalmente nos tornamos amigos de verdade, quando pude lutar ao seu lado com desejo de sermos todos uma família.
Por um momento, tudo valeu a pena. Por um momento, não me importei que Rin gostasse dele.
As tardes de treinos, onde eu me movia pelo desejo de superá-lo, ficando irritado por suas provocações. As missões onde nossas costas se protegiam mutuamente, quando nos movíamos para o perigo em conjunto, sem precisar dizer nada. O modo como Rin sorria para nós após a missão, não somente para ele.
Eu tive uma família.
Até ele arrancar tudo de mim, na mesma facilidade em que destruiu seu coração. O som dos Mil Pássaros ressoando através de seu corpo, Rin sussurrando seu nome uma última vez antes de desabar no chão, o som da sua carne se chocando no chão, curto e molhado.
Eu deveria tê-lo matado ali mesmo. Teria arrancado fora a sua cabeça e prostrado sobre seu túmulo, como uma oferenda divina. Um pedido de perdão por tê-la abandonado.
Acumulei essa raiva dentro de mim por muito tempo, aguardando pelo meu tão sonhado dia. Amaldiçoei suas preces dedicadas aos nossos túmulos, destruindo as flores que nos deixava. Cada vez que eu o via sozinho, desejava fazer com ele o que fez com ela.
Com Madara morto, eu finalmente pude tomar a dianteira dos planos. Zetsu cochichava em meu ouvido como um inseto persistente, mas bastasse um grito que ele ficava calado. Eu era o chefe agora.
E entre as conspirações e assassinatos, eu encontrava tempo para meu único e melhor passatempo: Destruir Kakashi Hatake.
○○○
— Kakashi! — Guy corria animado até ele, fazendo subir uma nuvem de areia por onde passasse. Seu escândalo tirou reclamações de comerciantes locais. — Tive uma ideia maravilhosa para o próximo desafio!
Meus dedos se enterraram na parede de trás da casa em que eu me escondia. Patético, eu pensei. Há pouco tempo, eu era seu rival, a pessoa que o admirava e desejava superar. Agora, outro iludido ocupava o posto.
Assistia suas interações através das sombras, entre as residências e atrás de árvores, o acompanhando mesmo nas fases em que não fazia nada além de ler sobre "Como um Ninja deve Morrer".
Eu me materializava em seu apartamento quando se perdia em seus desafios extravagantes. Seu cubículo miserável de apenas dois cômodos, composto por seu quarto e banheiro.
A cama ainda estava morna de seu corpo quando me sentei na borda. Meus dedos sólidos seguraram o porta-retratos, o vidro sujo por toques frequentes. Na imagem, a nossa família, a antiga equipe 7.
Minato e seu sorriso que carregava o sol, um bom sensei — porém teimoso demais para morrer. Rin, adorável como um filhotinho. E eu... tão tolo. Um rosto sereno e sonhador, sem pensar no mau que ficava ao lado.
Kakashi. O único que não sorria. Seus olhos sempre estreitos quando o assunto era eu. Sempre de nariz erguido, porque assim poderia me julgar de cima sem ter que abaixar a cabeça. A face de quem pensava que estaria acima de todos sempre.
Meu polegar passou pelo rosto de Minato, que lidava com nossas discussões. Meu sensei, um adversário formidável. Eu não precisaria causar sua morte se não fosse tão teimoso, todavia, sabia que ele me perdoaria no fim, quando tudo valesse a pena.
— Nós ficaremos juntos de novo. Eu prometo. — Arrumei o porta-retrato no seu devido lugar. — Esperem por mim.
À noite, quando Kakashi saía para se juntar aos caçadores, eu o acompanhava na surdina. Kakashi movia-se com a velocidade que lembrava nosso sensei, o Chidori iluminando seu rosto num show de luzes.
Não havia hesitação em suas matanças, apenas golpes diretos. A forma como optava por carregar corpos mortos do que vivos, o tornava tão ruim quanto eu.
Kakashi estava se destruindo e eu estava adorando isso. Ele se tornara tão profissional em matar quanto eu. Talvez mais. Enquanto eu destruía em nome de um sonho, ele o fazia por puro hábito. Um zumbi seguindo ordens, vestindo a máscara de herói que a Vila exigia.
Nada o alegrava, nem todas as tentativas inúteis daquela mula verde de Konoha e seus amiguinhos coloridos. Ele sentava entre eles, mas nunca esteve presente. Não havia nada entre eles que lhe interessasse.
Eu sabia disso porque era o único a enxergar além daquela máscara. Eu o odiava cada vez mais porque sabia o que significava cada expressão e cada mentira. Somente eu o entendia. Nenhum deles via seu eu real como... eu.
— Se você acha que tem algo ou alguém no seu apartamento, a gente acampa lá até quando você passar noites fora. Se tiver alguém, pegaremos. — A sugestão de Asuma foi a maior piada que ouvi naquela noite.
Eu imaginei toda a cena que seria se tentassem alguma coisa. Nenhum deles seria capaz de me ferir.
— Então topa? — O sorriso de Guy lembrava o de um cão animado.
Aquela voz estridente. Cada palavra sua era uma agulha martelada em meus tímpanos. Eu não conseguiria descrever o quanto gostaria de arrancar sua língua fora com minhas próprias mãos, desde o dia em que Rin comentou sobre ele ser engraçado. Eu deveria nos poupar dessa tortura.
Não. Kakashi não aceitaria isso. Sabia que ele diria exatamente isso, com exatamente essa entonação, antes mesmo que seus lábios se movessem.
— Não. — A resposta foi seca, direta, perfeita.
A reação deles foi satisfatória. A decepção clara de Asuma, apesar da desconfiança em seu olhar. Guy se desfazendo sobre a mesa, seus músculos grotescos perdendo vida como um balão furado.
Todos patéticos. Por que insistiam tanto nele? Kakashi estava tão morto por dentro quanto eu - e a única diferença entre nós era que ele ainda fingia respirar.
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Eu comecei a modificar seus objetos após ser tomado pelo tédio numa tarde qualquer. Uma gaveta entreaberta, apenas o suficiente para ser notada por um ninja. O retrato da nossa equipe — a família destruída — dois centímetros virada para a esquerda.
Sua reação foi além de minhas expectativas. De início, ele apenas suspeitou, mas com o tempo cedeu aos meus recados. Ele vasculhou todo o seu cômodo, culpando o vento, a memória falha e a gata malcriada da vizinha.
O entretenimento só acabava quando ele dormia profundamente, permitindo que eu surgisse em seu quarto.
A máscara puxada para baixo, revelando o rosto que poucas pessoas - talvez nenhuma — chegaram a ver. Na penumbra da madrugada, sua cicatriz ganhava um destaque mais profundo. O local em que ficava meu Sharingan. O meu presente.
— Consegue me ouvir? — Sussurrei, movendo os dedos intangíveis por sua jugular.
Desejei tê-lo matado muitas vezes, mas por algum motivo, nunca fiz. Houveram inúmeras noites em que penetrava os dedos em sua garganta, esperando para torná-los sólidos e sentir sua pulsação. Reduzi-lo ao pânico, ao arfante terror que eu conhecia tão bem. Ver a vida deixar seu corpo.
Ao invés disso, traçava caminho até sua cicatriz no olho, considerando como seria puxar meu Sharingan de volta. Seu rosto, tão sereno no sono, contraiu-se levemente sob meu toque fantasmagórico.
— Com o que você tanto sonha, rival?
Seria com as vidas que tirou? Comigo o observando enquanto dormia?
Kakashi dormia tão bem que eu me peguei invejando por desfrutar de necessidades humanas, que há anos eu não sentia.
Em outra noite, vi Kakashi sucumbir ao sono após horas imóveis na cama. O livro repousou sobre seu peito, as mãos desabando sobre seu corpo.
Aproximei-me como a sombra que me tornei, recolhendo o volume com cuidado. As páginas exalavam cheiro de tinta e papel novo. Sentei-me no chão de carpete, as costas apoiadas na cama onde ele repousava, e abri o livro na página marcada por um cartão de missão dobrado. Jardim dos Amassos?
"A lua iluminava todo o campo, transformando no cenário romântico ideal para o momento. Emiko recostou-se sobre o leito natural de grama, a terra se moldando ao seu corpo suavemente, como se a própria natureza cooperasse com o clima. O vestido de tecido mohair — simples, porém contendo uma linha de botões na frente — abria-se como pétalas sob os dedos trêmulos e atrapalhados de Ren.
Ele parou de respirar após o último botão. A pele de Emiko se revelou para ele, mais pálida do que imaginara, tornando-se porcelana diante da luz natural. Seus seios, sem proteção, subiam e desciam com uma respiração acelerada — grandes e firmes, com mamilos cor de pêssego que se encontravam eretos, ansiando por toques. A brisa noturna poderia tê-los deixado arrepiados, porém, ela não tentou cobrir. Em vez disso, arqueou as costas timidamente, oferecendo-se como um banquete diante das estrelas.
— Ren... — Sua súplica foi mais quente que qualquer tarde de verão.
Ele não precisou de outro convite. Seus corpos se colidiram, sedentos e exalando calor. A boca de Ren capturou os lábios de Emiko, que compartilhou de seu fervor com a necessidade de quem morreria se não o tivesse.
As mãos de Ren percorreram seu corpo como um desbravador por terras desconhecidas. Cada curva, cada vale, cada pequeno tremor em seus dedos era uma descoberta mágica. O vestido foi jogado para longe do corpo de Emiko, permitindo que agora toda sua pele estivesse diante dos olhos selvagens de seu parceiro.
Emiko arfou quando os dedos dele encontraram a umidade entre suas coxas — a revelação silenciosa de quanto ela o desejava. Seus dedos pressionaram os ombros de Ren, as unhas traçando linhas vermelhas que ele sentiria por dias com prazer.
Ren não poderia esperar por mais. O mundo poderia acabar naquele momento que ele não notaria — muito menos se importaria, contanto que estivesse com ela. Tudo o que existia era Emiko, seu tempo e seu amor eram inteiramente dela.
E a noite se tornou a cúmplice de seu..."
— Obito.
Meus dedos se contraíram por reflexo, enrugando levemente a página que eu segurava. O livro quase caiu de minhas mãos quando me virei para ver seu rosto adormecido, tranquilo — e sonâmbulo.
— Não... — Seu resmungo foi quase infantil, frágil como quando éramos amigos. Seus dedos se apertaram nos lençóis, torcendo os tecidos em um desespero sonolento. — Está caindo...
Me coloquei de joelhos ao lado da cama, esquecendo por completo da intangibilidade e do livro. Meus cotovelos afundaram no colchão quando inclinei na sua direção, curioso com qual morte estaria sonhando dessa vez.
— Estou caindo? — Sussurrei como a brisa noturna. — Ou é você quem me empurrou dessa vez?
Seus músculos se tencionaram, todos de uma vez. Na escuridão, vi suas pálpebras tremendo freneticamente, os olhos se movendo abaixo da fina camada de pele em urgência.
— A casa... — Sua mão se ergueu para cobrir o olho do Sharingan. — Eu não consigo segurar.
Senti meu próprio globo ocular arder em reação. Durante esse tempo, se tornou divertido ver como choramingava e se contorcia em pesadelos. Suas palavras desconexas trouxeram confusão, que logo julguei serem familiar por algum motivo.
Na prateleira, o livro encapado por couro branco se destacou entre os demais livros de autoajuda: Como evitar que sua vida desabe. Ele sequer chegou a ler metade daquele lixo.
— Que saco. — Foi minha vez de murmurar.
Sem mais entretenimentos por aquela noite, eu fui embora antes que ele despertasse de seus pesadelos repentinamente.
Fora dali, o mundo exigia minha atenção. A Akatsuki era como um conjunto de peças de shogi, cada peça deveria ser devidamente colocada no tabuleiro, um jogo onde cada movimento necessitava de atenção. A Vila da Chuva somente respirava sob meu comando, seus cidadãos eram meras formigas em que eu poderia pisar a qualquer momento. Zetsu, minha sombra persistente, não cessava de murmurar sobre "planos do Madara".
No dia anterior ao seu aniversário de dezoito anos, algo perverso cutucou minha mente. Uma necessidade quase infantil de marcar aquela data como uma ocasião mais do que especial.
Que presente seria adequado? Um genjutsu que o faria reviver nossas mortes repetidamente? Uma ilusão tão vívida que ele acordaria com o gosto do sangue de Rin em sua boca? Talvez, só talvez, eu pudesse surgir na sua frente na forma infantil, apenas para ver o pânico tomar seu rosto.
Vasculhei a aldeia em busca dele, verificando os lugares que mais frequentava para encontrá-lo vagando pela floresta ao longe da aldeia. Kakashi caminhava entre as árvores como um zumbi bêbado, tropeçando em raízes expostas e galhos caídos. Suas mãos, capazes de matar em mil formas diferentes, mal se agarravam às cascas das árvores por onde passava.
Percebi como seu perfume sumiu contra o cheiro ácido de saquê barato e suor doentio. Tudo nele indicava que ficara fora de si. Ele não aparentava ter um rumo.
O barulho da queda d'água surgiu infestando meus ouvidos. A mata revelando o antigo trajeto para a cachoeira, o maldito local onde Rin preparou meu aniversário na última vez. Não sabia como eu tinha esquecido do piquenique que ela fez — o pequeno bolo e sanduíches que preparou para nós, estes que pareciam terem sido feitos com tanto amor.
Recordava do sorriso de Minato, sua tentativa de fazer Kakashi cooperar com a ocasião. Uma tarde calorosa e divertida, desenterrada do fundo das minhas memórias.
Os passos de Kakashi cessaram na beirada. Seu corpo balançando lentamente com o vento, como se estivesse em alto mar.
— O que está esperando? — Eu assistia de trás da árvore, o som da cachoeira omitindo minhas palavras. — Não tem quem te impeça. Vá ficar com eles.
Como nas outras vezes, eu esperei. Sabia o que ele faria: encararia a morte de perto e desistiria após alguns minutos.
Desta vez, ele obedeceu.
Seu corpo inclinou-se para o abismo com uma determinação que me gelou os ossos. Num piscar de olhos, eu já estava agarrando a barra de sua camisa, o seu corpo inclinado para fora. Lá embaixo, a água esperando por sua queda, pedras que aguardavam seu fim.
E ali estava eu, impedindo a queda.
Permanecemos estagnados. Suportava o peso de seu corpo com uma mão, o cheiro de álcool e desespero de Kakashi tomando meus sentidos. Ele não se moveu, muito menos eu.
Por que fiz aquilo?
Puxei-o para trás com força bruta, seus pés tropeçando em si mesmo e quase caindo na lama. Eu me mantive atrás dele, torcendo para que não virasse.
— É você de novo. — Ele acusou, as palavras embebidas em saquê e algo mais profundo. Apoiou as mãos nos joelhos, me fazendo achar que vomitaria na máscara. — Não é?
Algo forte bateu dentro de mim — não o coração, pois eu mal tinha órgãos. Meu corpo inteiro congelou, cada músculo tensionado como um animal acuado.
— Fica me lembrando dos erros que cometi. — Ele continuou, fixando a atenção no chão, as pálpebras pesando sobre seus olhos, um cansaço que ia além do físico. — Eu nem sei se você realmente existe ou se é um castigo da minha consciência.
Somente ouvi. Porque aquilo soava como redenção, como um pedido de ajuda. Porque em outras circunstâncias, em outra vida, eu teria abraçado essa situação e ajudado.
Minha mão encontrou suas costas, um contato quente e firme, guiando-o para longe do precipício. Eu já cometia um erro grotesco ao interagir, ao tocá-lo, ao salvá-lo.
— Por que não me deixa em paz? — Eu sentia cada reação de seu corpo na palma da mão.
— Por que é divertido. — Deixei escapar a confissão. Minha mão apertou sua camisa, a raiva apertando lá dentro. — Eu deveria ter te deixado cair.
Suas pernas cederam, os joelhos afundando na terra molhada. Inclinado sobre o chão como um galho quebrado.
— E por que não me mata de uma vez? — Sua decisão calou qualquer som emitido pela floresta. O grito afastou os pássaros: — ME MATA!
Vi seus ombros tremerem, soluços contidos por um homem que escondia em excesso o que sentia. Eu permaneci de pé atrás dele, assistindo ao seu sofrimento mais de perto do que nunca.
A kunai apareceu em minha mão por vontade própria. Meus dedos agarrando seus cabelos prateados, puxando sua cabeça para trás com força suficiente para fazer seu pescoço arquear. A lâmina encontrou seu pescoço coberto pelo tecido, abrindo um pequeno rasgo para exibir a pele pálida, mas não o suficiente para abrir sua garganta. Aguardava por um pedido de misericórdia, alguma palavra final.
Parecia tudo tão fácil.
Sentia sua pulsação através da lâmina. Seus olhos - meu Sharingan e seu olho comum — não se fechavam, brilhando em lágrimas. Não implorava. Apenas aguardava com uma submissão que me fazia querer bater com sua cabeça na árvore mais próxima.
Eu podia ouvir a ordem de Madara: Mate-o! Refaça ele em nosso novo mundo que construiremos!
Minha mão tremia por ódio. Mais que isso, algo diferente, pequeno e frágil, impedindo minha mão de puxar o corte. Kakashi, entregue ao meu julgamento como quem aguardasse por aquele dia.
Eu entendi. Ele queria isso. Assim como eu, não aguentava mais. Não via além daquele dia e sonhava com seu fim.
Enquanto ele estava ajoelhado em meu altar de vingança, percebi que não queria ser seu carrasco.
Fiz a kunai desaparecer dentro da minha manga em um movimento sutil, desaparecendo na sombra. Seus olhos vazios e profundos não deixavam o meu único olho exposto pela máscara.
— Não hoje. — Afrouxei o aperto de seus cabelos, fazendo um empurrão que poderia ter sido violento, mas que se tornou estranhamente gentil no último instante. — Seu castigo será viver, Kakashi.
Uma sentença final que não trouxe uma reação a ele, nenhum protesto. Permaneceu imóvel, os ombros encurvados por carregar tanta emoção. Minha mão encontrou seu ombro uma última vez — um último toque. O kamui nos envolveu em sua distorção, mudando o cenário da floresta para seu quarto cavernoso que chamava de lar.
Kakashi caiu sobre a cama já apagado pela exaustão e a bebida. Por um momento que pareceu eterno, fiquei observando seu sono profundo, tomado por roncos e sem o sonambulismo que me entretia.
Eu decidi que seria mais adequado ficar longe.
Chapter 3: Obito – Ren e Emiko
Notes:
Nota da autora: para não se confundirem, lembrem-se que Kakashi fez 18 há pouco tempo e Obito é apenas alguns meses mais velho. Ou seja, nesse tempo, Obito não teve uma experiência romântica de verdade, nem qualquer outra coisa semelhante. Não esqueçam que ele "morreu" com 12 anos, antes de experimentar o mundo.
Chapter Text
O calor do sol cobria meu rosto sem a máscara. De pálpebras fechadas, via um mundo vermelho e quente - familiar e humano. Saboreei da sensação, deixando para trás os pensamentos sobre meus projetos, focando na paz que relaxava meus músculos sobre a grama.
Três dias. Oito horas e uns onze minutos desde que tomei minha decisão.
Eu contava cada segundo. Três dias desde que o puxei do abismo. Oito horas desde que quase cedi ao impulso de cortar sua garganta e regar a terra com seu sangue. Onze minutos desde que o toquei.
Abri os olhos para o céu azulado. Dias como aquele se tornaram raros. Quando não havia mais missões, os planos cessavam temporariamente e eu podia fingir que descansava, à espera do próximo ato. Um descanso que se resumia a pegar sol, pois não tinha outro passatempo que me entretia como aquele.
Eu estava disposto a esquecer o que vi, no entanto, não podia fechar os olhos que me lembrava dos seus. O vazio. A falta de viver que eu compreendia mais do que ninguém. Então por que agora, quando ele finalmente se ajoelhou diante de mim como um suicida bêbado, meu próprio corpo se recusou a dar o golpe final?
Eu sempre o compreendi, diferente de seus colegas com frases motivacionais e sorrisos toscos. Agora, maldito seja, ele também me compreendia. Partilhamos de algo único, uma ligação celestial que ninguém poderia explicar.
Muito além de vê-lo sofrer. Eu me entretia com as provocações que fazia, a raiva em seus olhos estreitos, a respiração acelerada pelos sustos e — como eu imaginava — seu coração batendo forte contra a caixa torácica. O corpo esquentando tanto quanto o meu diante do sol agora.
Era uma coisa somente minha e dele, como o Sharingan que compartilhávamos. Um passado somente nosso, uma emoção única. Ambos estávamos mortos, embora somente um ainda tivesse o coração retumbando dentro de si. E eu queria sentir esse coração, pôr a mão sobre sua pele quente e sentir a vida através dela.
— Zetsu. — Chamei-o ao me sentar na grama.
Tinha conhecimento de que sempre observava, se rastejando por baixo da terra como um inseto impertinente.
— Vai sair de novo? — Metade de seu corpo surgiu para fora da terra. A calmaria de sua pergunta não combinava com o lado preto de seu rosto, o lado mais desconfiado. — E se eu precisar de você?
— Basta usar o jutsu de transformação e tomar meu lugar. — Seria a primeira vez que eu seria descuidado, porém... sentia que valeria a pena. — Fique e observe tudo. Vou querer um relatório quando eu retornar.
O kamui distorceu o cenário ao meu redor, mudando para a vista da floresta de Konoha. Eu precisava saber a localização de Kakashi. Rezava para que aquele Verme Verde de Konoha não estivesse com ele, pois só de pensar eu já apertava os punhos.
De acordo com meu desejo, Kakashi não estava na companhia do inimigo, contudo, compartilhava de um treinamento com outra pessoa. Esse eu conhecia. Tenzo. Um rapaz de cabelos compridos, ainda muito novo para ser considerado uma ameaça, embora seus olhos brilhassem em admiração pelo seu superior.
Kakashi demonstrava suas habilidades em taijutsu, rebatendo os golpes do menino na facilidade em que matava seus inimigos. Aguentou os chutes nos antebraços e bastou um golpe na barriga do adversário para que o afastasse.
— Tem melhorado. — Kakashi usou um tom gentil. Pude notar um pequeno sinal de felicidade nele. — Só precisa melhorar mais na velocidade. Seu corpo precisa acompanhar sua mente.
Tenzo inchou de orgulho — tanto que eu pensei que fosse explodir. Sua mão repousava sobre o estômago, não parecendo ter sido tão afetado pelo golpe.
— Sim, senhor! — Assentiu sério, os lábios espremidos numa tentativa de conter um sorriso. — Pode me ensinar mais?
O treinamento persistiu durante toda a tarde, concentrado em taijutsu e kunais. Kakashi não usou tudo de si. Teve piedade, apesar de ter dado uma surra no menino. Seus passos permaneciam firmes, nada cambaleantes como naquela noite. A firmeza em corrigir seu admirador, nada parecido com a voz embargada que me implorava por sua morte.
Como se nada tivesse acontecido.
Apertei a camisa sobre a região do estômago, sentindo o que poderia ser dito como um frio na barriga, um peso peculiar. Não faria sentido. Há anos que não sentia alguma coisa humana. Por que despertar de repente?
— Vamos parar por aqui. — Kakashi girou a kunai nos dedos antes de guardar no bolso. — Nos vemos na sede. Tá bem?
— Vou aguardar pelo senhor. — Tenzo fez uma reverência exagerada, jogando a cortina de cabelos castanhos para frente.
A fumaça de seu desaparecimento se esvaiu quando Kakashi suspirou em exaustão. Seu corpo desabou ao lado de uma árvore, onde suas folhas apresentavam cores amareladas, dada a chegada do outono. Sua respiração profunda se fundia à ventania, por fim, um suspiro relaxado.
Entre as árvores, assisti ele pescar uma pílula de comida do bolso, jogando-a inteira na boca. Piscou. Tão lento que pensei ter dormido. Ao abrir o olho, tinha o livro pervertido na mão, mastigando a pílula em grande volume enquanto iniciava sua leitura. O anoitecer tingia seu rosto de laranja, criando uma bela imagem que remetia a paz.
Essa paz que criava um efeito oposto em mim. Frio na barriga? Quando eu sentia isso? Não sentia nada há anos.
Sendo assim, por que a sensação aumentava vendo como mastigava a comida dessaborosa e lia distraidamente? Eu apertei mais a região do meu abdômen.
Sua leitura não passou de muitas páginas. O livro desabou sobre suas coxas, seu peito subindo e descendo em um ritmo lento, profundo, denunciando seu sono. Apesar de adormecido, sua postura mantinha uma elegância curiosa, afetando meu desejo de aproximar para tocar seu rosto.
Todavia, o que fiz foi diferente.
○○○
Eu aguardei pela chegada da madrugada, quando as operações dos anbu começavam e seus ninjas se tornavam parte da noite. Todo cuidado perto deles seria pouco. Evitava o ninja sensorial usando máscara de raposa, contornava outro caçador que tinha olhos de águia — apesar de não possuir um byakugan.
Um mísero barulho da minha parte e eu seria reconhecido, porém não pego. Mesmo assim, precisava garantir que apenas Kakashi soubesse da minha presença. Esperei que saíssem para eu arrumar meu convite.
Entre as duas e três da manhã, o grupo de caçadores fazia retorno para a aldeia através das árvores, deixando rastros de seu cheiro de sangue para trás. Kakashi os liderava, sua máscara molhada por respingos de sangue — perfeito — como sempre.
Ele parou sobre um dos galhos. Consequentemente, os outros também. Cuidadosamente arrumado entre as folhas, uma página de seu livro preferido, destacando a parte em que ele havia parado de ler. Arrancou a tempo de não ser lido pelos seus colegas.
— Algum problema? — O caçador com máscara de coruja inclinou a cabeça.
Kakashi amassou a folha contra sua palma, descontando uma raiva silenciosa que eu entendia bem.
— Não. Nenhum. — Respondeu seco.
Sabia que entenderia. Inteligente. Seguiu sozinho as minhas pistas que levavam para longe da aldeia, distante do que pudesse nos interromper. Páginas que deixei presas em árvores por kunais, outras presas em folhas, guiando-o até mim na clareira aberta.
Aguardei sentado sobre uma rocha lisa que emergia no meio de um riacho, assistindo como o curso da água se dividia contra ela. A correnteza trazia folhas e galhos caídos pela ventania.
Na brisa noturna, árvores sussurravam através das folhas, uma coruja piava na sinfonia dos grilos. Ideal para quem poderia dormir ao som da bela melodia, capaz de acalmar os pensamentos mais inquietos.
Dobrei as pernas, unindo as solas dos pés. Pressionei os dedos sobre a garganta, encontrando músculos e tendões como um músico afinando seu instrumento. Eu deveria ser capaz de modificar.
— Ah-A... — O tom saiu rouco, desordenado. Pigarrei para ajustar. — Ah...
Precisava que fosse perfeita. Nada que lembrasse o timbre que ele conhecera. Não arriscaria despertar memórias indesejadas.
Cortando minha linha de raciocínio, senti sua presença eletrizante atravessar meu corpo intangível com seu Chidori. A luz passou por mim como uma estrela cadente, trazendo um show de luzes piscantes para a clareira e o riacho.
Kakashi aterrissou no chão, erguendo uma baixa poeira. Sem a máscara da anbu, eu via melhor seu rosto em fúria, as sobrancelhas de neve franzidas, o Sharingan brilhando tanto quanto a lua.
Parecia bravo. Não imaginei que mexer com seu livro fosse ser tão arriscado.
— Seu covarde. Levante e lute! — Na palma esquerda, cuspiam faíscas azuladas, criando uma dança de sombras ao redor de seus olhos desiguais.
Apoiei a mão na rocha para me erguer, sentindo sua frieza atravessar a luva. De pé, eu o encarei sem nada nas mãos, sem uma reação. Um espaço de três metros. Contudo, eu sentia a tensão que ameaçava estourar suas veias — os ombros rígidos, a mandíbula cerrada com tanta força que deveria doer.
— Tire a máscara. — Sua ordem saiu entre dentes cerrados.
Sorri livremente por baixo da máscara, usando o novo tom de voz que não pudesse se familiarizar:
— Tire a sua primeiro. — Retruquei. As palavras trouxeram perplexidade para seu rosto por um instante. — Não imaginei que rasgar o livro fosse te deixar tão irritado, Kakashi.
— Sua presença me irrita. — Ele corrigiu. As faíscas do Chidori desapareceram por conta própria. Seus pés mudaram de posição, adotando outro método de ataque. — Bom saber que fala. Você tem coisas a me responder.
Kakashi saltou em minha direção como um felino, voando para um combate direto — surpreendente para quem tinha o hábito de analisar o inimigo primeiro.
Dessa vez, permiti que seu corpo se chocasse contra o meu e nós caímos sobre o gramado. A dor nas costas foi suportável, uma breve onda atravessando minha coluna. Seus punhos vieram ao meu encontro, um após o outro, ganchos de direita e esquerda que eu suportava ou segurava contra minhas palmas.
Imprevisto por mim, a kunai brilhou em sua mão erguida antes de descer para atacar minha máscara. Agarrei seu pulso a centímetros do impacto, aplicando uma força que fez seu corpo tremer acima do meu.
Kakashi se tornara um vulcão — quente e trêmulo. Seus pés rasparam na terra, usando seu próprio peso para aplicar mais força contra mim. Na claridade, sua máscara marcava a linha de seus lábios retraídos, a curva do seu nariz torcido.
E abaixo dele, eu me peguei sorrindo abertamente. Não uma careta cruel de Madara. Um sorriso verdadeiro. Porque naquele momento — com sua lâmina à poucos centímetros de penetrar minha pele, seu corpo quente pressionando o meu — eu me sentia mais vivo do que em qualquer momento antes daquela madrugada na cachoeira.
— Que selvagem. — Provoquei sem pensar, arrancando um rosnado dele.
Quase ri. Uma sensação inexplicável que reverberou pelo meu peito. Não tinha lógica no que eu sentia, somente o mais puro fogo do momento, que nenhum Uchiha seria capaz de criar. Seus quadris tocando os meus, o fervor das nossas peles atravessando as roupas, os músculos de seus braços tremendo contra minha força. Nunca, em todos esses anos de espionagem, obsessão e ódio, eu estivera tão perto.
Meus sentidos se tornaram mais aguçados. Sentia sua respiração, cada arfada ofegante escapando por seus lábios entreabertos, o rangido de seus dentes cerrados. Inspirei seu perfume, um almíscar profundo e masculino, misturado com o suor do trabalho noturno — nada nojento como aquela noite. Dessa vez, seu cheiro tinha algo capaz de me embriagar.
Aproveitei de sua própria raiva — um tremor maior que se concentrava no antebraço esquerdo — elevando meu joelho de encontro a sua coxa, em uma aplicação de força calculada para não quebrar, apenas desequilibrar e inverter nossas posições.
Rolamos pelo gramado como duas crianças brincando. Uma disputa por quem ficaria por cima, quem dominaria a kunai. Firmei suas costas no chão, minhas coxas prendendo as suas para evitar golpes baixos, as mãos segurando a lâmina perto do — meu — seu Sharingan. Eu não tinha a intenção de perfurá-lo, apenas prolongar nosso momento único.
— Céus... — O suspiro escapou de mim, totalmente atônito.
Em nome de tudo que existia, o que estava acontecendo comigo?
Agora, eu quem tinha sua visão por baixo. Seu corpo moveu-se bruscamente de encontro ao meu, uma falha tentativa de escapar sem mover sua cabeça, por isso agarrei suas mãos com a minha direita quando tentou reverter a situação — a mais forte, evitando que formasse selos. Me senti montando em um touro raivoso. Este pensamento me divertiu.
Pressionei o polegar direito em seu pulso, compartilhando de seus batimentos comigo. Eram compassos indefinidos, como tambores tocados incessantemente.
— Você está bem irritado. — Comentei, inclinando sobre ele. — É medo o que sinto? Ou algo a mais, Kakashi?
De início, ele não respondeu. Seu olho comum fixou no meu, sério e analítico, como no passado. Por um milésimo de segundo, considerei que tivesse me reconhecido.
— Se quer me matar, faça logo. — Ele proferiu. Sem clemência, nem tristeza, apenas na firmeza de quem não tinha mais nada a perder.
Contudo, ele tinha, só não poderia saber ainda.
— Te matar? Eu não quero te matar. — Ri baixo ao repetir. Lancei a kunai para longe, cravando-a em uma árvore distante. — Viu só?
Kakashi pensou rápido, imprevisto até para mim. Jogou sua cabeça contra a minha, a testa acertando meu nariz em uma dor irritante que não se aliviou apesar da máscara estar entre nós. O impacto me fez pensar que havia sido quebrado, porém, sabia que não tinha tanta força assim.
— Filho da...! — Trinquei os dentes, a mão voando de encontro ao seu pescoço para pressioná-lo no chão, sem machucar.
Não. Eu não poderia machucá-lo. Jamais. Não foi um gesto violento, apenas uma contenção. A culpa foi minha por me distrair demais.
Meus dedos apertaram seu pescoço, encontrando uma de suas veias pulsando contra minha digital, pressionando o suficiente para que não escapasse de mim. Ele gemeu por raiva — e ali outra coisa se acendeu em mim — carregando uma feição de quem permanecia arrumando um modo de fuga.
— Mantenha a calma, cãozinho raivoso. — Aconselhei. Eu ofegava, embriagado pelas sensações que transmitia para mim. Podia sentir que seus batimentos eram os meus, que seu calor me alimentava como carvão na brasa.
Kakashi cedeu, mas não se rendeu. Sentia a movimentação de sua garganta na palma da mão, o ar que entrava e saía. Eu tinha sua vida em minhas mãos. Kakashi estava em minhas mãos, compartilhando do mesmo ar que eu. Um desejo perverso brotou em mim. Quis apertar mais forte, fundir nossos corpos nesta luta, fazer com que cada partícula dele se tornasse parte de mim.
Só que... como?
Como me alimentar de seu ar sem que o sufocasse até a morte? Sem que eu precisasse mostrar meu rosto. Eu queria beijá-lo na mesma necessidade que ele tinha de me matar. Queria, mais do que tudo, sentir seu gosto.
— Quer arrancar informações de mim? — Ele questionou com desconfiança. — Não vai funcionar.
Por que sempre tão negativo? Eu nem queria saber de informações! Queria isto. Esse cenário, como no seu livro patético, onde o casal se expôs sob a lua sem o menor pudor.
— Por que você é sempre tão desconfiado? — Me aproximei mais enquanto murmurava. — E se eu só quisesse sua atenção?
A risada seca de Kakashi repercutiu entre nós.
— Você invade minha casa, mexe nas minhas coisas, rouba meu livro e me atrai para o meio do nada! — Ele tentou se debater, sem sucesso contra minha força. — O que esperava? Seu psicopata de merda!
Suas palavras ofensivas deveriam me irritar. Em vez disso, senti novamente um prazer por ouvir a raiva em sua voz. Kakashi se superava, tornando-se cada vez mais divertido.
Psicopata? Que exagero.
— Eu diria que estou mais para um admirador. — Afrouxei o aperto em seu pescoço, deslizando para a barra de sua máscara. — Você não se sente muito sozinho, Kakashi? Não acha que alguém como você merecia um admirador?
Eu podia ver as engrenagens girando em sua mente, tentando compreender no que tudo se transformou. Não era o único. Eu só queria senti-lo para decifrar o que tanto causava em mim. Por que me fazia sentir coisas que nem a morte apagou.
— Está mais para um stalker. — Kakashi cuspiu as palavras. Seu olho estava fixo no meu, e pela primeira vez, eu vi algo que não esperava, uma vulnerabilidade exposta. Lindo. — O que quer de mim?
Meus dedos puxavam lentamente sua máscara, sem pressa, como se desembrulhasse o tão sonhado presente, revelando a curva de seu nariz.
— Quero que seja meu ar, Kakashi.
Seu corpo se tornou tenso de repentino. Um galho estalou atrás de mim.
Braços musculosos se envolveram em meu pescoço, puxando-me para trás com força suficiente para arquear minhas costas. Pelo perfume duplicado, eu concluí que era Clone das Sombras.
— Eu pensei que estivesse sem chakra. — Grunhi, mais surpreso do que estressado.
— Tudo bem agora. — O verdadeiro Kakashi se ergueu do chão, me encarando como fazia com seus inimigos. — Veremos quem é esse suposto admirador.
O braço do clone pressionou minha garganta, a mão livre agarrando a borda da minha máscara.
O pânico me tomou.
— NÃO!
Em um movimento, agarrei o clone pelos braços e o arremessei sobre mim, usando seu próprio impulso para lançá-lo contra Kakashi. Tarde demais, ele levou o objeto consigo ao ser lançado. A brisa da noite tomou minha face deformada.
Girei no chão como um louco, encolhendo sobre mim mesmo. Meus braços cobriram o rosto numa proteção desesperada, os dedos se enterrando nas raízes do cabelo e puxando como se eu pudesse criar uma máscara nova.
— Você estragou TUDO, KAKASHI! — Gritei em tom acusatório.
A noite parou de respirar. Sem vento, sem a sinfonia dos animais. Sabia que Kakashi aguardava, ouvi quando seu clone se dissipou em uma nuvem de fumaça. Ele não teve tempo de ver meu rosto. Por sorte, muita sorte.
Contudo, o dano foi feito. Nosso momento foi arruinado.
— Vire-se. — Ouvi sua ordem.
Me mantive encolhido como um rato assustado. Eu queria desfazer meu patético rosto com minhas próprias mãos. Arrancar a pele estragada para ter outra nova por baixo, melhor e mais bela, mais perfeita — digna de ser vista por ele.
— Sei que está me ouvindo. — Kakashi se tornava impaciente, dando passos em minha direção. — Terei que fazer eu mesmo.
Não permiti que me tocasse pois eu já estava sendo puxado pelo kamui, me distorcendo e entrando na minha própria dimensão, meu espaço frio e solitário. Naquele lugar, desabei sobre o chão gelado, meu corpo ainda curvado em posição fetal.
Morto de novo.
Fechei meu único olho.
Chapter 4: Kakashi – Não é Paranóia!
Chapter Text
O último vestígio de fumaça da invocação foi carregado pelo vento, sumindo entre as árvores da floresta. Na grama verde, a matilha de cães me observava com expressões distintas - tanto em ferocidade quanto em tédio absoluto.
Estendi para eles o objeto responsável pela minha falta de sono dos últimos cinco dias: a máscara laranja, decorada por linhas pretas.
— De novo, Kakashi? — Pakkun questionou em tom tedioso, como habitual. Suas orelhas caídas balançaram quando suspirou. — É o quinto dia que nos coloca nessa caçada atrás do invisível, sem o cheiro que nunca encontramos.
— Estou com um bom pressentimento hoje. — Eu não acreditava em minha própria palavra. Carregava um desejo incontrolável que não me deixava em paz por nada, desde o dia em que aquele maluco obcecado sumiu como uma alucinação na minha frente. — Eu estava pensando que podemos estender a busca por mais um quilômetro hoje.
— Hm... — Pakkun não disse nada sobre, mas seus olhos caídos demonstravam preocupação. — Eu espero que essa busca valha a pena. Pessoal, pode farejar.
Ele e os demais cheiraram a máscara com a mesma atenção que tiveram nos outros dias, seus focinhos se contraindo a cada inalada.
— Faremos a busca padrão, estendendo por mais um quilômetro. — Ele tornou a dar as ordens. — Quero a formação Coelho em Fuga. Se alguém sentir qualquer coisa fora do normal, avise aos demais.
A matilha assentiu com movimento de cabeça, adentrando na mata em direções opostas, tão silenciosos quanto um pequeno exército de shinobis. Pakkun permaneceu parado. Sentou sobre as patas traseiras, tornando a me analisar dos pés à cabeça — a olheira abaixo do meu único olho exposto, os ombros tensionados, a maneira como batia meu pé freneticamente no chão, denunciando a ansiedade por respostas.
— Nós faremos aquele jogo de perguntar e fugir da resposta? Ou você prefere me dizer o que está acontecendo? — Ele começou, analítico e direto. — Tem alguma coisa te estressando, Kakashi. O que esse suposto alvo te fez para irritá-lo tanto?
Ambos sabíamos que eu tinha sido afetado pelo alvo. Como eu explicaria que não tinha enlouquecido? Como eu diria que, apesar de ter sido levado ao auge da fúria, eu senti um frio na espinha que me deixou mais vivo? A forma como falou comigo, como alguém que de fato me conhecia, tão bem quanto eu mesmo. E seu momento final, o desespero em sua voz quando arranquei sua máscara, quase me fazendo sentir pena dele, meu espião psicopata.
Pudesse ser isso que me irritava: o extremo mistério. Aquele desconhecido soltou falas suspeitas demais, demonstrando ser alguém que me conhecia dia-a-dia. Meus instintos concluíram que eu deveria estar vendo o rosto daquela pessoa todos os dias, cumprimentando na rua, esbarrando na fila da livraria, comprando comida no mesmo restaurante, tudo isso sem saber. Ele poderia ser qualquer um deles.
Pakkun tinha razão, como sempre. Meu corpo se encontrava fatigado pela falta de sono, as noites mal dormidas em que meus pesadelos anteriores tinham sido trocados por cenários em que eu perseguia um fantasma mascarado. Aliás, as missões noturnas na anbu exigiam corpo e mente ao máximo, os treinamentos que passava para Tenzo nas tardes após o almoço, e agora, uma caça insana de cinco madrugadas consecutivas. Nessas últimas cento e vinte horas, eu dormi apenas quatro.
— Estou ótimo, amigo. — Outra enganação, mas não poderia prolongar minha conversa com ele, por mais que Pakkun fosse um excelente ouvinte. — Acredito que devesse se concentrar nos rastros. Devemos ter alguma sorte hoje.
Ele se manteve estagnado por mais alguns segundos, onde eu fui seriamente julgado como um mau mentiroso.
— Você e eu sabemos que não vamos encontrar nada. — Disse ele, após isso, adentrou na mata para sumir da minha vista.
Sozinho mais uma vez, virei a máscara para mim. Passei os dedos pela borda do material rígido e alaranjado, aguardando que, por um milagre divino, ele se revelasse para mim.
— Me diga quem é seu dono. — Exigi sussurrando.
Se eu não segurasse aquele objeto sólido, pensaria que toda a experiência não tivesse passado de um delírio. Um karma do meu passado tomado por erros, transformado em um fantasma feito para consumir o que restou de mim. Contudo, o objeto seguia firme em minhas mãos, sem um perfume que denunciasse suas características — o que comia, onde se deitava, se tinha contato com outras pessoas. Era bizarro como um objeto poderia ser tão misterioso quanto seu dono. Como se a pessoa abaixo disso fosse nada.
As provas de sua existência se resumiam àquela máscara e a sensação de seus toques que ainda queimavam minha pele. A sensação de seu polegar sobre meu pulso, o calor que emanava dele quando ficava mais perto, o divertimento exposto na voz, aquela pressão sobre meu pescoço — que não apertava para matar.
Eu sabia que ele poderia ter me matado se quisesse.
Mais tarde, na solidão do meu apartamento, agarrei a máscara como se ela fosse desaparecer também. Possuir aquele objeto era uma confirmação de que eu não estava louco. Que minha mente, por mais cansada que estivesse, não estava imaginando inimigos. A ameaça era real.
Uma parte impulsiva de mim — a parte interna que se remoía com a humilhação de ter sido subestimado — quis levar o objeto diretamente para Guy e Asuma, jogá-lo sobre a mesa do Ichiraku no meio do jantar deles e dizer: Vejam! Eu estava certo! Não é paranoia!
Todavia, eu descartei a ideia no mesmo instante. Esse não era eu. Kakashi Hatake não corria para seus colegas com pedaços de evidências e teorias da conspiração. E, sendo sincero, o que eu realmente provaria? Qualquer um poderia comprar ou roubar uma máscara. Sem outras provas, sem um corpo, sem um motivo, eu seria um desesperado. Um homem louco que gritava que não era louco.
Isto não seria sobre provar sanidade para eles. Muito mais intenso que isso. Eu precisava capturar meu observador usando minhas próprias mãos, apagar o divertimento dele. Esse seria o resultado por me subestimar. Tratou nossa briga como um jogo, somente para tentar arrancar minha máscara? Eu faria ele aprender, da pior maneira, que não deveria me transformar em um brinquedo.
O sol surgia no horizonte quando a mata se moveu sem a presença do vento. Um após o outro, meus cães surgiam carregando expressões cansadas, suspiros pelo fracasso, olhares que já diziam tudo.
— Lamento, Kakashi. — Pakkun, assim como eles, apresentava cansaço físico. — Não encontramos sinal algum nas proximidades, nem uma linha de roupa. Devo dizer que nós estamos cansados dessa busca sem resultado. Se for nos chamar novamente, que seja com rastros de verdade, tá bem? Que tenha a certeza absoluta. Não apenas um pressentimento.
Senti que seu aviso soou como Guy e Asuma falavam comigo. Pakkun não poderia estar julgando minha sanidade, e sim a confiança em meu julgamento.
Eles começaram a desaparecer na neblina de invocação, de volta ao seu mundo canino. Eu ponderei sobre o assunto. Sabia que não teria uma próxima vez. Não que fosse uma decisão, somente uma rendição temporária. Meu corpo implorava por um descanso, tinha virado um amontoado de ossos pesados. Meu olho ardia, cada membro do meu corpo implorava por um sono digno — eu desejava hibernar até a próxima década.
Soltei um suspiro através da máscara. Não podia encontrar palavras perfeitas o suficiente para me desculpar por toda a frustração e a exaustão, causadas por buscas fracassadas.
— Obrigado, pessoal. — Não consegui conter um bocejo forte e largo, que criou lágrimas nos cantos dos meus olhos. — Tenham um bom descanso.
— Você também, garoto. Durma bastante. — Pakkun foi o último a desaparecer, parecendo mais preocupado comigo.
◇◇◇
Encostei a testa na parede fria, o peso do meu corpo se apoiando nesse ponto, enquanto a água quente lavava o suor e a terra da floresta. Meus movimentos eram pesados e lentos, como se eu estivesse usando os pesos do Guy. Quando repousei sobre a cama, respirei aliviado. Parecia que a cama me recebeu de braços abertos.
A paz cessou pelo desconforto de um objeto duro abaixo de mim, pressionando minhas costas. Grunhi por irritação. O que viria agora? Me afastei para o canto do colchão, enfiando a mão dentro dos lençóis, agarrando uma coisa retangular.
Semicerrei o olho para enxergar aquilo que puxei. Um pacote embrulhado em papel presente — roxo como uva, bastante brega, estampado por shurikens prateadas. Sem um recado a princípio, embora eu suspeitasse do remetente. Examinei com cautela, meus sentidos em estado de alerta, buscando por algum selo perigoso, um papel bomba prestes a explodir.
Nada. Nem o cheiro denunciava se havia sido tocado por mãos humanas.
Eu deveria jogar aquilo fora. No entanto, a curiosidade e o cansaço só queriam acabar logo com essa palhaçada, atrapalhando meus pensamentos mais lógicos. Devagar, puxei a ponta solta da fita, desfazendo da embalagem esquisita.
Era um novo Jardim dos Amassos com um capítulo extra!
Uma edição especial que saiu por tempo limitado há muito tempo atrás. Essa estava em excelente estado. Pude sentir o cheiro forte da tinta e do papel novo, me deixando zonzo por um segundo. A alegria reduziu. Meus instintos diziam que eu não deveria aceitar.
Por outro lado, a parte mais cansada e comum de mim, queria ler aquele livro estúpido. Desejava começar o quanto antes, para saber se Ren e Emiko teriam seu romance no barco.
A guerra interna foi encerrada. Eu abri o livro sem pensar mais uma vez, deparando com um recado que certamente não foi escrito pelo autor:
"Sinto muito pelo que fiz com o anterior. Aceite esse como um pedido de perdão?"
Ao lado disso, um rostinho feliz foi desenhado.
Toquei a borda da folha, relutante. Eu queria muito poder me aprofundar naquela história apaixonante, o paraíso que me afastava daquela realidade. Não. Eu precisava agir como um caçador, não como o maior fã dessa arte magnífica. Se aceitasse ler isso, iria muito além da leitura. Estaria aceitando seu presente, consequentemente fazendo-o pensar que gostei — por mais que fosse verdade. Ele não poderia achar que gostei disso, da sua invasão ao meu espaço pessoal.
Fechei o livro com força. Encarei os bonecos da capa. Ren me julgaria por não aceitar, ele ficou correndo atrás da Emiko durante toda a história. Cobri o livro com o papel esquisito, amassando a embalagem na tentativa de desagradar ele, caso encontrasse.
Abri a janela para a vista da aldeia amanhecendo, todos em seu invejável descanso. Apertei o pacote na minha mão. Jardim dos Amassos tinha se tornado meu refúgio de pesadelos e memórias assombradas, agora me faria lembrar de um imbecil obcecado.
Soltei um bramido do fundo do meu peito, lançando o objeto pela janela com toda a força que tinha. O pacote voou, sumindo atrás das casas que eu mal podia ver. Bati as janelas para fechar, tão violento que os vidros tremeram, ameaçando quebrar. Puxei as cortinas na mesma força, trazendo a escuridão de volta ao cômodo.
Me lancei na cama de novo, sem aquela sensação saborosa do abraço da minha cama. Deitado de costas, encarei o teto escuro, o peito subindo e descendo por bufadas e resmungos de raiva. O cansaço foi esquecido. Agora restava a irritação. Por ele. Por mim. Eu queria ter lido aquela droga de livro. Eu gostei do presente.
— Quanta baboseira. Nunca mais chego perto desse livro. — Resmunguei frustrado, me movendo pela cama. — Cara esquisito, obcecado... Droga de cama!
Virei para um lado da cama que se tornou desconfortável, depois o outro lado que não era melhor e precisei mudar. Me estiquei de bruços, desesperado pela posição que trouxesse o descanso. Eu só queria dormir! Seria pedir demais?!
Esmurrei o travesseiro com raiva até cansar e enterrar o rosto nele, esperando que adiantasse em alguma coisa. Nada disso. Fechava as pálpebras e o sono se recusava a levar minha consciência para longe do meu estresse. Ler teria me ajudado a acalmar — acompanhar a paixão de Ren e Emiko, as emoções se tornando tão intensas a ponto de precisarem expressar por mais além do que toques superficiais. Gratificante, eu diria.
Comecei a relembrar a cena íntima e surpreendente nas águas termais, tão carregada de intimidade quanto aquela outra em que Ren invadira o quarto dela na madrugada, enquanto os pais da moça dormiam no cômodo ao lado.
Fiquei tão absorto nessas memórias narrativas que, sem perceber, o sono finalmente veio. Não houve sonhos, apenas a escuridão solitária e silenciosa.
Repentinamente, toques rápidos e insistentes na janela me fizeram despertar. A raiva se concentrou na garganta, criando um rosnado. Logo quando eu consegui meu descanso. Marchei para a janela e puxei as cortinas, quase às arrancando. Para meu espanto, era Tenzo.
Metade de seu rosto se mostrava para fora da máscara de caçador, a expressão tranquila do novato que saira recentemente da anbu de Danzo.
— Estou muito atrasado? — Questionei, rouco de sono, mas preocupado com o tempo que perdi.
— Um pouco, senhor. — Sua calmaria era contagiosa. Ele puxou uma mochila das costas e estendeu para mim, através da janela que abri. — Temos uma nova missão de alto escalão. Tomei a liberdade de trazer seu equipamento para adiantar.
O menino era bom.
— Obrigado. — Fui sincero.
Puxei a mochila para dentro, fechando a janela e as cortinas. Abri a bolsa sobre a cama bagunçada. Todo o meu equipamento foi arrumado com cautela, desde as armas até as roupas cuidadosamente dobradas sem causar um amasso.
Enquanto dava pulinhos para vestir a calça, vi as horas no relógio da parede. A surpresa quase me levou a uma queda no chão. Eu dormi por dez horas inteiras, perdi metade do dia e o momento de ajudar Tenzo com seu treino. Deveria pedir perdão a ele depois. Não poderia me atrasar mais para a missão.
Coloquei a mochila nas costas, ajustando as alças para meu tamanho. Fui até a janela, no entanto, a coloração me atraiu pelo canto dos olhos. Desacreditei em ver que o presente foi reposto, intacto, sem nenhum amassado. A mesma embalagem roxa extravagante e suas shurikens prateadas.
Ele teria comprado outro? Já esperava que eu jogasse aquele fora?
Não poderia me importar agora, sequer tinha tempo. Resolveria esse assunto na volta. Empurrei a janela e saí de modo ágil, fechando-a e saltando para o teto do prédio, onde Tenzo aguardava. Nos fundimos às sombras do fim da tarde, traçando caminho para longe de nossa aldeia. A vista de Konoha ficou para trás e eu senti que já deveria questionar:
— Qual o alvo dessa vez?
Tenzo, apesar de eu não saber o trajeto até o momento, se mantinha ao meu lado e não na frente.
— Encontrar um homem disfarçado de mercador. — Respondeu mais firme, assumindo o posto mais sério de caçador. — Está contrabandeando informações nossas que veio unindo ao longo dos anos, agora quer leiloar para nossos inimigos.
— Última localização? — Puxei o ar puro, assumindo a postura profissional.
— Noroeste, rumo ao País do Raio — Ele falou imediatamente. — Temos poucas horas para interceptá-lo antes que ele cruze a fronteira e desapareça no labirinto de montanhas. Precisamos ser mais rápidos e espertos, pois ele tem protetores. O senhor está em condições de manter o ritmo necessário para este trajeto?
Isso foi uma pergunta profissional, nada que me subestimasse. Contudo, senti um toque na ferida pela minha falha. Eu não pretendia fraquejar novamente como caçador, era tudo o que eu tinha. O fracasso das cinco noites de busca seria o primeiro e último.
— Estou ótimo — Afirmei em bom tom.
Tenzo acenou com a cabeça, pois aceitava minhas palavras sem duvidar. Sem segundas intenções, nada além de um menino querendo ser o melhor. Para um garoto da sua idade, ele era um parceiro bastante útil. Aceitava tudo o que eu dizia, se movia de acordo comigo sem atrapalhar as missões e, o mais importante, nunca me irritava.
Sem a necessidade de prolongar a conversa, eu acelerei os passos, acompanhado por ele. Meu foco se tornou a missão e deveria ser somente ela. Toquei a mochila em minhas costas, onde guardei a máscara entre o equipamento. Não poderia arriscar que fosse pega por ele, caso fosse revistar meu apartamento.
Peguei pensando na possibilidade dele estar olhando de algum lugar. Era só o que me faltava, eu ficar paranoico em campo, como se já não bastasse em casa. Como eu resolveria essa questão? Deveria ter um livro sobre isso, alguém que soubesse lidar com essa situação. Olhei para o meu lado, Tenzo não saberia, somente tinha quatorze anos, nem adiantaria falar.
Foco, Kakashi.
Primeiro, encontraria o nosso alvo, depois... Isso! Encontrar! Na primeira vez, fui eu quem foi até o psicopata. Agora, eu faria ele vir até mim.
Chapter 5: Obito – Ser o Que Precisa
Chapter Text
Encarei o espelho caído, meu reflexo me observando de volta em meio aos estilhaços. Tracei os dedos pelas cicatrizes destacadas, linhas desreguladas e rígidas que nunca tinham me incomodado até aquele dia. Para mim, essa metade desfigurada significava um novo começo, o renascimento daquele que mudaria o mundo.
Agora, eu só via como uma aversão, o atraso para outra coisa que eu almejava com tamanha necessidade.
Agarrei um caco de vidro, tão afiado a ponto de cortar minha palma. Um desejo insano controlava meus pensamentos: cortar essa parte fora. Rasgar a carne defeituosa para renascer uma nova e mais bela. Uma face que não despertasse nojo ou comiseração nele. Uma face que pudesse olhar sem sentir remorso. Sabia que não teria como. Não daquela forma.
Orochimaru veio à mente. Eu não confiava naquele homem, nem em seus métodos arriscados, contudo, a ideia não pareceu ruim. Soube de suas experiências com relação à troca de corpo — e apesar de serem questionáveis, faziam sentido. Assim como eu, ele também buscava consertar um erro do mundo.
Pensando nisso, com o vidro a centímetros da bochecha, a ideia de um rosto liso e novo não pareceu ruim. Contudo, eu não seria louco de entregar meu corpo para um maníaco daqueles. Pensei no que ele faria com meu Sharingan, com as células do Hashirama, meu sangue Uchiha. Descartei essa ideia de imediato, soltando o pedaço de vidro.
Precisava descobrir outro modo de me apresentar para Kakashi. Sem ser como Obito, o garoto morto. Muito menos Madara, o inimigo de Konoha. Eu precisava me moldar em um novo personagem, ser o que ele quisesse, o que desejasse.
Pressionei a palma ensanguentada sobre meu peito, onde eu deveria sentir um coração retumbando. A falta de batimentos me tornava um boneco oco. Ter sentido a pulsação dele, carregada de adrenalina, me deixou tão… insano. O sentimento de ser perfeito como ele sumiu, porque agora eu queria tê-lo.
Tornou difícil não refletir sobre como eu faria isso. Conquistá-lo se tornou o desafio mais intenso que já tive — e eu não estava disposto a desistir. Nem que eu precisasse restaurar a embalagem daquele livro toda vez que ele o jogasse pela janela.
E ele jogou umas oito vezes.
Eu estava lá, pegando o presente sempre que era lançado pela janela, parecendo um goleiro profissional — e um pouco indignado. Deu trabalho para encontrar aquela edição exclusiva, não teria como encontrar outra tão fácil.
Por que precisava ser tão teimoso, Kakashi?
Mantive a paciência ao respirar fundo. Na minha dimensão, recortei um novo papel de presente, embrulhei o livro como novo, até me dando o trabalho de alinhar a fita no lugar certo, mesmo ela insistindo em grudar nos meus dedos.
Na oitava vez, deixei um bilhete colado na embalagem: “Pare de jogar fora, por favor!”
E mesmo assim, ele arremessou o presente pela janela sem sequer cogitar abri-lo. Eu saltei entre os telhados das casas, o coração imaginário quase saindo pela boca, e peguei a tempo de cair em uma lixeira aberta.
Em algumas dessas vezes, vi sua hesitação em aceitar, suas digitais traçando a borda da embalagem, o polegar esfregando a fita para remover. Aquele toque significava mais do que aceitar um presente — ele sabia disso. Era aceitar meus sentimentos. Se lesse, eu saberia que tinha alguma chance, por mínima que fosse.
Dividir minha atenção entre ele e a Akatsuki se tornou um problema crescente, que desagradou Zetsu Negro. Durante as missões do Kakashi, eu me ausentava, retornando para cumprir meus deveres na Aldeia da Chuva.
— Isso está se tornando um problema. — Disse ele, enquanto observávamos a paisagem enevoada da aldeia. — Ouvi Konan e Nagato conversarem. Ela quis fazê-lo repensar sobre as escolhas que está tomando. Suas saídas frequentes têm atrasado os planejamentos.
Um trovão surgiu ao longe, iluminando os arranha-céus por um segundo. Zetsu Negro tinha razão, infelizmente. Contudo, eu não conseguia abandonar aquilo que me fazia respirar. Meus pensamentos não deixavam Kakashi. Se tornou uma necessidade ter que vê-lo pelo menos uma vez ao dia, saber como estava.
— Eu vou consertar isso. — Prometi sério. — Tudo isso.
Tive a certeza de que Kakashi me aceitaria mais se eu tivesse um nome, uma nova identidade, como fiz com “Madara” na Akatsuki. Eu precisava forjar outro ser, uma nova história para contar a ele. Todavia, não poderia ser qualquer uma. Ele era inteligente demais, desconfiado por treinamento e natureza. A farsa precisava ser perfeita.
Sendo assim, eu decidi invadir o prédio do Hokage.
Escolhi a madrugada mais tranquila, quando até os seguranças cochilavam sentados na porta, seus rostos inclinados para baixo. Me teleportei para dentro da sala, mantendo a intangibilidade para não acionar os inúmeros selos de proteção.
Caminhei silenciosamente entre as estantes altas, lendo as informações das caixas até encontrar o que precisava: “Desaparecidos” e “Em infiltrações”. Sete caixas para desaparecidos em missões, e nove caixas para os ninjas que estavam infiltrados.
Peguei uma de cada categoria e as coloquei no chão, sentando ali mesmo com as pernas cruzadas. Descartei todas as femininas — o que foi bastante, visto que as kunoichis constituíam a maior porcentagem em missões de infiltração e disfarce.
Não fui desatento. Todo documento que folheei foi recolocado em sua devida posição. Nada deveria ser percebido depois, nenhum amassado que indicasse uma invasão.
Na quinta caixa de infiltrados, eu encontrei uma ficha gasta. Assim que abri, soube que encontrei o perfeito. Sem parentes vivos. Infiltrado há mais de dois anos em um país inimigo. Seus relatórios chegavam a cada seis meses, mas o último estava atrasado em três meses — ou seja, grandes chances de ter morrido, embora sem a confirmação.
Era tudo o que eu precisava. Um corpo sem dono. Uma história que eu pudesse moldar.
No quesito de aparência, a semelhança era aceitável. Seu cabelo era um pouco mais curto que o meu, mas isso seria justificado pelo tempo desaparecido. Analisei cada curva de seu rosto na foto desbotada, memorizando os detalhes caso fosse necessário usar um jutsu de transformação.
Eu não precisaria disso por hora, graças a máscara. Meu rosto verdadeiro ficaria oculto, bastasse que eu dissesse os números de identificação corretamente para confirmar meus status como ninja espião da aldeia. E ele, como caçador Anbu, teria de aceitar.
Carregaria essa mentira comigo até completar meu desejo do mundo melhor. E depois que tudo fosse feito, eu consertaria minha imagem. Tudo ficaria bem. O plano perfeito.
○○○
Aproveitei quando Kakashi saiu para almoçar e entrei no seu apartamento. De imediato, avistei as armadilhas que ele instalou desde o chão até o teto. Linhas de aço fino, invisíveis a luz do sol, papéis bomba colados nos objetos que eu costumava mexer, armadilha de urso camuflada sob os lençóis de sua cama.
Céus, que exagero.
Eu sorri ao ver seu esforço. Mantive a intangibilidade, atravessando suas defesas no chão, ignorando os papéis explosivos. Pela quantidade de papéis bomba que ele usou, parecia que não se importaria com o estado que o lugar — e os vizinhos — ficaria após uma explosão daquelas. De qualquer forma, eu evitei acioná-las, pois meu objetivo não era esse.
Vasculhei a cama, a cabeceira, o banheiro e a estante, tudo sem tocar. O livro não estava em nenhum lugar. Nenhum sinal da bela embalagem roxa.
Precisei de um jutsu de disfarce comum para ir até lá fora em plena luz do dia — uma imagem básica que me tornava comum entre os outros. Atravessei a rua para a lixeira do beco, verificando dentro dela e ao seu redor, fingindo a normalidade de quem teria perdido um objeto. Não encontrei nada.
Significava que ele teria aceitado?
A esperança surgiu de algum lugar, forte como brasa. Algo que somente ele poderia inflamar em mim, num momento tão inoportuno. Eu corri dali. Sabia do hábito que Kakashi tinha de sair sozinho após o almoço, buscando um canto para descansar na floresta. E sabia que esse local era o mesmo onde eu havia furtado seu livro na última vez.
E ele estava ali. De costas para mim, de pé frente a uma fogueira acesa sem motivo aparente — visto que não fazia frio, muito menos escuro o suficiente. Tive um mau pressentimento. Tentei dar a volta sem ser notado, quando percebi que ele segurava o livro acima das chamas.
Reagi sem pensar. Corri e pulei na direção do livro. Graças ao Sharingan, acompanhei os movimentos em lentidão, a fumaça contornando o livro, a expressão serena, porém fria de Kakashi — e da sua manga, vi a lâmina surgir em direção ao meu pescoço.
Pensei rápido, no último segundo. Agarrei o livro e seu pulso, evitando o desastre. Só não consegui evitar o impacto dos nossos corpos, levando a uma queda desastrosa no gramado, criando uma confusão em que ele tentou enfiar a lâmina nas minhas costas e eu precisei recuar, criando um espaço entre nós para evitar outro golpe.
Segurei o livro contra meu peito, fazendo parecer que eu segurava uma jóia preciosa. Kakashi se ergueu na mesma agilidade, desembainhando sua espada das costas, a postura pronta para o próximo ataque.
— Sabia que apareceria — Disse ele, extremamente convencido.
— Isso custou caro, sabia? — Ergui o livro, bastante indignado. Não custou nada. Eu roubei, mas foi um roubo trabalhoso.
Ele parecia um gatinho zangado, todo arrepiado e pronto para atacar com garras e dentes. Tentei suavizar minha voz, esperando acalmá-lo:
— Escuta… A gente pode conversar? — Quis dar um passo em sua direção, porém senti uma linha pressionando meu tornozelo.
Evitei prosseguir com aquele movimento. Mais armadilhas, grande parte delas camufladas no solo, fios de aço invisíveis na luz, e não duvidava que eu estivesse pisando em papéis bomba. Kakashi planejou essa visita, transformando nosso encontro em uma armadilha.
Eu deveria estar muito zangado, só deveria. Dito isso, tive um sentimento de satisfação por ver que Kakashi também pensara em mim. Ele dedicou seu tempo e seus pensamentos a mim. Para me pegar. Não consegui evitar um sorriso.
— Fale daí. — Ele soltou o comando que obedeci de imediato.
Assenti devagar, decidido a não fazer movimentos bruscos e imprevisíveis. Por mais que eu pudesse contornar aquilo, precisava fazê-lo acreditar que estava no domínio de tudo, principalmente de mim — que, em tese, estava mesmo.
— Estou seriamente chateado por ter cogitado jogar isso fora. Pensei que gostasse. — Iniciei o assunto, sincero na decepção que tinha na voz.
Kakashi franziu o cenho, demonstrando o absoluto desprezo pela minha pessoa. Doloroso, eu diria — criava uma distância maior entre a gente, no sentido emocional.
— Eu quero que confie em mim. — Deixei a confissão sair. Ergui a mão em sinal de paz. — Pode aceitar esse presente? É só o que peço. De um admirador, não um inimigo. Não tem nada de ruim aqui.
Ele manteve a espada apontada para mim, a postura rígida como de um monumento. Eu quis saber o que pensava nesse momento.
— Não confio em desconhecidos. — Retrucou.
— Eu entendo. — Mantive o tom pacífico — Mas uso essa máscara pelo mesmo motivo que você, eu acho.
Mentir se tornou tão natural para mim quanto respirar. Embora eu nunca tivesse entendido o motivo que levou Kakashi a cobrir metade do rosto desde a infância. Quando pequeno, eu pensava que ele fosse um menino que vivia doente.
Ele nada disse. Vi seu polegar batucando discretamente o cabo da arma, como se estivesse ponderando sobre o assunto. Entendi que fosse uma brecha para eu prosseguir, sendo assim, recitei a história que ensaiei na minha cabeça:
— Sou um ninja da Folha, como você. Mas estou em uma missão de infiltração, por isso não devo sair por aí exibindo o meu rosto. — Apontei para minha face, especificamente a nova máscara que fiz. — Um deslize e tudo seria arruinado.
Kakashi não relaxou, mas endireitou a postura, sua mão repousando no quadril, a outra mantendo a espada ao lado do corpo. A lâmina refletia minha imagem. Eu era outro que não podia relaxar, ainda estava sendo julgado.
— Não acredito em você. Prove. — Outra exigência sua.
— Sou Otto, ninja de identidade 1022066-9. — Repeti os números que memorizei, tranquilo. — Estou infiltrado há mais de dois anos. Não posso ser visto longe de minha posição, por isso uso a máscara.
Ele girou o cabo entre os dedos, pensativo. Seus olhos me avaliaram de baixo para cima, processando a informação. Confesso que, no meio disso, me senti bem em estar diante dele novamente.
— E por que ficar voltando para cá? — A pergunta dele foi rápida, como um professor testando o aluno.
— Para ver meu lar. — A resposta saiu de imediato, pura e sincera daquilo que eu omitia.
Kakashi trocou o peso do corpo com um leve balanço para a outra perna, então se inclinou ligeiramente para frente e começou a andar sem tirar os olhos de seu alvo. Cada passo distinto era uma armadilha que ele evitava, confiante em excesso no que plantara. Eu assisti, imóvel como ordenou.
Ele fez um único selo na mão. Cheguei a pensar que enfrentaria outro ataque dele, mas seu clone das sombras se virou e correu em direção a aldeia, desaparecendo entre as árvores numa velocidade surpreendente. Ele ia verificar a identidade.
— Parentes? — O original se manteve fixo em mim.
— Nenhum vivo. — Era a mentira mais fácil de contar, pois ficava próxima da verdade.
Ele começou a me rodear feito um tubarão, lento, buscando sangue, pronto para atacar. Ouvia a grama ceder sob seus passos cuidadosos, causando certa aflição pelas armadilhas que poderia acionar.
— Como eu nunca te vi nessas “visitinhas”, Otto? — O novo nome saiu da sua boca com descrença.
— Porque eu sempre mantive distância e ia embora sem ser notado. — Engraçado, isso estava ficando mais fácil do que pensava.
Kakashi completou uma meia volta, cessando os passos atrás de mim. Sentia seu olhar queimando minha nuca, vendo através da minha máscara e mentiras como um Byakugan.
— E por que, de repente, surgiu esse interesse em entrar no meu apartamento? — Ele me interrogava como um alvo da anbu. — Vai me dizer que você não tem o seu?
— Mais de dois anos fora e você acha que a administração da aldeia manteve um apartamento me esperando? — Soltei uma risada leve, na intenção de descontrair. — Eles já devem ter dado meu antigo espaço para um recruta novato. Não tenho teto.
— Hm. Não respondeu a primeira pergunta. — Ele insistiu, pressionando a ponta da lâmina fria contra minha coluna. Sua desconfiança aumentava. — Qual a sua obsessão específica por mim, Otto? Por que não outro ninja? Por que o meu apartamento?
Ele estava tão perto e tão longe. Praticamente sentia seu calor na pequena distância entre nós, seu cheiro de terra úmida e canela. Entregaria tudo — o plano, Madara, a Akatsuki, o mundo — para desfrutar de seu calor de novo, como naquela noite.
— Pensei que eu tivesse deixado claro. — Contive um sorriso, mesmo que não pudesse ver. — Assim como você, eu aprecio romances intensos. E você, Kakashi Hatake, desperta em mim o que eu nunca teria em livros.
— Então… me vê como uma história? — Ele questionou baixo, se tornando incrédulo, até ofendido. — Alguém para te entreter nas noites solitárias? Pensa que sou algum amante de esquina para divertir você?
— Não! — Eu que quase me ofendi diante dessa acusação. Amante de esquina, olha só. Coloquei a mão sobre meu peito, aquela que sangrou outro dia, e que agora não restava mais nenhuma cicatriz do corte. — Te vejo como aquilo que falta em mim. Depois que perdi tudo, só tenho retornado para essa aldeia por sua causa. Mais nenhuma outra razão.
Dizer essas palavras em voz alta foi mais esclarecedor do que todos os meus pensamentos até aquele momento.
Senti sua tensão através da lâmina que nos separava, a hesitação pressionando-a levemente em minha carne, uma ameaça que prometia penetração, para então abaixá-la.
— É perda de tempo. Não tenho o que você precisa. — A dureza em suas palavras me feriu de formas indescritíveis. — Se ficar perto, vai morrer.
— Você tem tudo o que eu preciso e desejo. — Eu não podia deixar acabar desse jeito. Virei lentamente, indo contra o perigo porque ver seu rosto se tornou mais urgente. — Isso é sobre eu correr perigo? Ou você que não se sente digno de ser amado?
Meu Kakashi. Querido, ferido Kakashi. Agora, de perto, eu enxergava nele um peso maior que não conseguia antes quando o observava de longe. O trauma do abandono, a certeza de que era um amaldiçoado, um imã para desgraças. Minhas questões deixaram-no vulnerável, abalado. Ele apertou o cabo da espada com força, e pensei que enfiaria aquilo em mim.
No fim, fechou os olhos e suspirou profundamente, soltando um ar de cansaço. Quando reabriu, a tensão se dissipou nele, e eu vi — ou devo ter sentido — o esmorecimento do seu rosto. Girando a espada na mão, ele a guardou de volta na bainha, abaixando sua guarda. Ali, eu soube que recebeu a memória de seu Clone das Sombras. A verificação foi feita.
— Tudo bem, Otto. Você está a salvo. — Kakashi me deu as costas, perceptível para mim que agora eu não era mais considerado uma ameaça. Saltou como um acrobata, leve e gracioso, pousando no galho mais alto da árvore. — Agora saia daqui, eu volto depois para desarmar isso. Preciso voltar ao trabalho.
Suas palavras não tiveram emoção, de volta ao profissional, como quando encerrava uma missão.
Ah, não. Eu não poderia permitir que outro de nossos encontros terminasse daquela forma.
— Kakashi, espera! — Eu pedi, exasperado. Impulsionei para os galhos, começando a persegui-lo pela mata. — Me dá uma chance.
— Me deixa em paz! — Ele demandou por cima do ombro. Ao invés de diminuir a velocidade, ele acelerou.
— Fique com o livro, pelo menos! — Gritei, estendendo o objeto em sua direção, apesar da distância que aumentava entre nós, no sentido físico e emocional. Era uma oferenda angustiada.
Kakashi não me olhou. Ele fez uma manobra inesperada, se lançando de um galho para uma árvore e mudando a direção, tentando me despistar na mata densa. Eficaz, naturalmente majestoso. Eu, no entanto, fui teimoso de prosseguir com a perseguição. Repeti seus movimentos, me mantendo atrás dele.
— Por que não me deixa cuidar daquilo que destruíram em você? — Insisti, saltando por cima de um galho grande.
— Eu nem te conheço! — Ele rebateu, mergulhando na vegetação. Seu rastro de chakra sumiu, um truque simples para me despistar, porém bastante esperto.
— Cuidamos desse problema agora mesmo. — Pousei ali e afastei os galhos que atrapalhavam minha visão, não encontrando ele.
Observei ao meu redor com o Sharingan, captando cada movimento da floresta — nessas horas que desejei ter um Byakugan guardado no bolso. Saltei para um galho mais alto, a fim de ampliar minha visão, de onde pude ver uma movimentação suspeita no arbusto ao sul. Muito óbvio que fosse uma armadilha.
Ignorei aquilo e avancei na direção oposta, guardando o livro dentro da camisa. Cortei caminho para alcançar onde supus que ele tivesse ido, prevendo sua estratégia, e assim, surgindo logo atrás dele. Logo se encontrava Kakashi, saltando nos galhos como o caçador silencioso que era.
Ele olhou para trás, e eu pude notar um movimento sutil de seu olho comum — indicando sua decepção e uma perplexidade sutil.
— Nós não precisamos namorar a princípio. — Eu continuei o assunto, acelerando os passos para correr ao seu lado. Mantive um tom casual, como velhos conhecidos que conversavam. — Para isso existem encontros, não é? Passeios. Jantares casuais. Você pode me ofender o quanto quiser, prometo que vou ouvir cada palavra.
Kakashi pousou em um galho maior, tendo espaço suficiente para que eu me juntasse a ele. Eu fui logo após, mantendo uma distância respeitável. A tensão pesava seus ombros, soprando um ar de exaustão através do tecido. Entretanto, suas mãos permaneciam livres, sem selos ou armas.
— Você — Ele se virou para mim, rápido e intimidador. Apontou um dedo acusador para meu peito, como a razão de todos os seus problemas. — está me irritando seriamente.
Ele estava sentindo algo. Por minha causa. Apesar de ser um sentimento ruim, não diminuía o calor que senti.
— Isso é ótimo. Estou te causando alguma outra emoção além de desprezo. Não é maravilhoso? — Eu suspirei admirado. Dei um passo na sua direção, diminuindo a distância entre a gente. Minhas mãos se estenderam pela intenção natural de tocá-lo, de acalmar aquele homem estressado. — Não acha cansativo ter que sentir somente o tédio? De fazer as mesmas coisas, dia após dia, vivendo automaticamente como um aparelho?
A máscara poderia esconder seu rosto e suas emoções de todos, mas não de mim. A linha de seus lábios se contraiu para dentro, quase impossível de notar. Eu sabia que tinha tocado em um ponto sensível.
— Pare de fingir que me conhece! — Seu tom não foi alto, porém escapou por uma fúria dolorosa. A raiva não era somente por mim, como pela vulnerabilidade em que o deixei, a exposição de tudo o que guardou durante todo esse tempo. — Você não sabe nada sobre mim! Você está obcecado por uma versão minha que criou na sua cabeça! Seja lá o que você pensa ter visto em mim, o que acha que sente… é uma mentira!
Eu sabia que não. Por esse motivo, não me deixei afetar por suas palavras. Elas não destruiriam anos de observação obsessiva. Kakashi precisava ouvir minhas verdades, ainda que somente uma parte delas.
— É assim que você pensa? — Questionei baixo, unindo as sobrancelhas. Devagar, levei a mão para dentro da camisa, puxando o livro para fora. Estendi para ele. Uma última tentativa de entregar aquele presente. — Você, para mim, funcionou como esse livro funciona para você: um refúgio. A fuga de uma realidade maldita.
Ele não pegou o livro, mas manteve a atenção nele. Uma brisa leve passou entre a gente, balançando suas madeixas prateadas.
— Só que… — Decidi continuar, acrescentando mais daquela emoção que ele causava em mim, o que me fazia sentir mais vivo. — eu não te vejo como um passatempo, Kakashi. Eu te vejo como alguém que trouxe a cor de volta para meu mundo.
Seu olhar ergueu do livro e encontrou o meu. A fúria permanecia ali, só menor, perdendo espaço para uma confusão contida.
— Você pode descontar sua raiva em mim — Declarei, mantendo os braços estendidos como uma oferta. — pode me xingar, me destratar, ignorar, mas não pode me afastar. Eu sou seu, Kakashi, para fazer o que bem entender, contanto que se sinta tão vivo quanto você me faz sentir.
Eu aguardei por uma resposta no silêncio demorado, assombrado pelas palavras que expusemos. Pensava na resposta negativa, a aceitação relutante, um novo surto de raiva. Sendo realista, me preparei para uma rejeição.
— Preciso trabalhar. — Suas palavras saíram baixas, distante de minhas expectativas. Não era uma negativa. Nem uma afirmativa. Seria um “ainda não”.
Uma esperança que me agarrei com pernas e braços.
— Pode pelo menos aceitar o livro? Juro que não é uma bomba. — Supliquei, mantendo o livro estendido. — A não ser que palavras possam te explodir, mas aí não seria culpa minha.
Ouvi ele soltar um arzinho pelas narinas — eu teria conseguido tirar um sorriso dele? Seus dedos da mão se contraíram, hesitante em aceitar. Desse modo, ele a ergueu, tocando o objeto e consequentemente tocando meus dedos. Um contato breve que senti como se eletricidade tivesse percorrido meu corpo.
Ele pegou o livro, avaliando a capa intacta, ainda nova — resistente às suas tentativas de descarte que eu evitei.
Kakashi não abriu a boca para falar mais nada, nem para agradecer. Segurou o livro com a firmeza de quem portava uma arma, e depois disso, se virou, me dando a visão de seu perfil artisticamente esculpido antes de saltar do galho, desaparecendo na mata.
Dessa vez, eu não o segui. Senti que esse foi o primeiro capítulo de nossa história — uma nova história.
Chapter Text
Batidas frenéticas na portaam interromperam minha leitura. Eu queria se ele fosse sério, meu corpo tensionado pela possibilidade. Não . Seria impossível. Além disso, por que de repente ele começaria a usar a porta da frente agora, depois de tanto usar entradas alternativas?
As batidas se tornaram mais urgentes, tão violentas que fizeram o chão tremer. Entendi logo quem era o autor delas.
— Kakaashiiii! — Guy falou do outro lado, sem interromper os muros na porta. — Sabemos que você está aí dentro! Posso sentir sua preguiça contagiosa daqui!
Fechei os olhos, suspirando. Meu novo Jardim dos Amassos dizia para eu ficar deitado e retornar a leitura de romance intenso. Nem precisaria pensar muito para decidir ficar, no entanto, conhecido Guy a ponto de saber da sua insistência — e do dano que poderia causar se consequências com aqueles golpes.
Fechei o livro e o escondi embaixo do travesseiro. A ida até a porta foi tortuosa, composta por passos lentos e arrastados até que eu alcancesse a maçaneta. Deparei com o sorriso de Guy, e atrás dele, sua equipe de perturbação: Asuma, em seu jeito descontraído, mastigando um pirulito; Kurenai, lançando-me um olhar de preocupação; e Genma, encostado na parede com uma postura tranquila.
— O que está acontecendo? — Perguntei, sem fazer o menor esforço para disfarçar o mau humor.
— Vou dormir a tarde toda, cara? — Asuma ignorou a pergunta, analisando minha aparência de exaustão. — Seu olhar está péssimo.
— Falei para eles que deveriam deixá-lo descansar. — Kurenai se defendeu, cruzando os braços. Contudo, ela era outra que avaliava minha aparência.
— Não há tempo para descanso quando somos tão jovens! — Guy explodiu com sua energia absurda, seus olhos brilhando por determinação. — Nós estamos aqui para resgatá-lo da sua caverna! Sem direito de negar! É um salvamento!
— Pode acabar gostando. — Genma acrescentou, o palito balançando em seus lábios. — É melhor do que ficar a tarde toda lendo.
Fiquei parado na entrada, olhando para os quatro. Era um incômodo. Todo aquele falatório ameaçava machucar minha cabeça com enxaquecas.
— Declaro que não estou capacitado para sair hoje. — Decretei, demonstrando meu cansaço na voz. Era inútil, eu sabia, porém a formalidade fazia parte de um caçador.
— Larga de ser esperada, Kakashi! — Guy, é claro, ignorou completamente o decreto. Ele agarrou meu pulso, e com uma força surpreendente, me deixou para o corredor. — A juventude não espera por decretos! Temos um festival para ir! Asuma, pegue os sapatos dele!
Fui arrastado como uma sacola pelos corredores. Na escadaria, sacudiu meu braço para me libertar — uma vitória mínima.
— Eu caminho sozinho. — Declarei, massageando o pulso que ele abriu.
Enquanto seguia o grupo rumo ao portão, eu olhei para trás, para a janela do meu apartamento no quarto andar. Eu queria que ele estivesse lá dentro agora. Observava a gente?
Nem sabia para onde estávamos indo. Meus pés seguiam no automático, embora a mente estivesse distante.
Ele poderia estar observando agora. Recordava das suas palavras na floresta, aquela confissão perturbadora insinuando que me observava há mais tempo do que eu pensava. Agora ele decidia se declarar abertamente, com juras de amor doentias e um presente que, com desgosto, eu assumia ter gostado.
Aquele dia havia sido estranho. Esse "Otto" arriscava sua missão de infiltração, seu disfarce, sua segurança, tudo para vir me ver. Era uma atitude tola, amadora. Eu nunca aprovaria isso se viesse de algum outro caçador.
Todavia, uma parte incômoda e hipócrita de mim — aquela que amava ler romances intensos — sabia que se lesse uma cena dessas em um dos meus romances, a teria achado profundamente romântica.
A hipocrisia quase me fez revirar os olhos. Eu estava julgando um obcecado por me assombrar, enquanto desfrutava dessas fantasias amorosas nos livros e filmes.
— Vai ver que não é muito longe daqui — Guy não parava de falar. — Somente umas duas horas de caminhada até a aldeia mais próxima. No máximo!
— Que?! — Foi um coro de reclamações, todos ficando exasperados.
Guy se encolheu sob os protestos, contudo, permaneceu andando. E pior que isso, nós continuamos a seguir ele. Já havíamos passado de um ponto sem volta, a floresta se estendendo além de nossas vistas, guiando-nos para um compromisso involuntário.
— Gente, nós fazemos trajetos mais longos que esse todos os dias! — Ele tentou se defender.
— Quando estamos trabalhando! — Kurenai rebateu imediatamente, as poucas olheiras denunciando seu cansaço. Era o cansaço de ter que lidar com Guy sendo Guy. — Hoje deveria ser um dia para descansar, Guy!
Um murmúrio de concordância unânime veio de todos do grupo, até mesmo de Genma, que balançava a cabeça.
— Eu prometo a vocês que vai valer a pena! — Guy se virou para caminhar de costas, mantendo aquele brilho no olhar. Ele uniu as palmas das mãos na frente do rosto, como em uma prece. — Vocês têm minha palavra! Se for ruim, farei as próximas missões burocráticas de vocês! Todas!
— Isso é uma promessa séria. — Asuma sorriu. A expectativa de escapar da papelada do Hokage era a chantagem perfeita.
— Vocês têm a minha palavra! — Guy confirmou, antes de elevar as apostas para o nível do absurdo. — E se não gostarem, eu farei quinhentas flexões com um braço só, carregando um de vocês nas costas!
— Não, nem pensar. — A recusa foi imediata e coletiva.
A imagem de Guy tentando fazer flexões com Kurenai ou pior, comigo, sentado em suas costas era uma imagem que deveria ser proibida.
— Somente a primeira parte já basta. — Declarei, falando por todos nós.
A última coisa de que precisávamos era de um Guy mais musculoso e motivado.
Ele se deu por vencido, contudo, o brilho teimoso em seus olhos deixou claro que a ideia das flexões não havia sido abandonada. Ele provavelmente as executaria depois, carregando sacos de areia com nossos nomes escritos neles. Eu já conseguia imaginar.
Duas longas horas de caminhada obrigatória até um destino no qual eu não tinha o menor interesse. Eu nem tinha expectativas, presumia que Guy fosse ter bastante trabalho com minha papelada. Piorando a situação, um som chegou até nós — uma música alta, muito alta, vinda com risadas e vozes. Tudo tão barulhento quanto a criatura verde ao meu lado.
— Parece ser divertido. — Kurenai tentou ser otimista.
— Com certeza vai ser! — Guy afirmou, se lançando de um galho alto e aterrissando em uma pirueta digna de um acrobata, que fez Genma levantar uma sobrancelha. — O panfleto prometeu muita diversão e risadas até cair os dentes!
— Não sei se ‘rir até cair os dentes’ seja o slogan mais atraente do mundo. — Asuma comentou sem compartilhar desse ânimo.
— Se Guy continuar nessas acrobacias, vai perder os dele rapidinho. — Genma observou nosso colega saltar para outra árvore.
— Ânimo, pessoal! Temos um dia maravilhoso pela frente! — Guy gritou, saltando e correndo alguns metros à frente. — Não fiquem com esse humor do Kakashi também!
Humor do Kakashi? Decidi não discutir, guardando a indignação para mim.
A conversa — se é que se podia chamar todo o escândalo do Guy de conversa — seguia guiada por ele, sem uma pausa para respirar, até que finalmente avistamos os primeiros postes decorados da aldeia no anoitecer. Logo na entrada, uma faixa colorida e desgastada balançava entre duas estacas, anunciando: FESTIVAL DO OUTONO, com desenhos de folhas douradas, frutos vermelhos e animais.
— Ah, esse festival. — Asuma pareceu entender. — Eu ouvi falar. O pessoal dedica o evento à colheita, aos animais que os sustentam e às histórias da estação. É uma tradição antiga.
Mesmo sem a vontade de estar ali, eu comecei a analisar os detalhes da aldeia enquanto entrávamos na multidão. Entre todas as cores, as mais usadas eram vermelho, laranja e amarelo, todos de acordo com a estação, também usando pouco de verde.
— Além de usar as cores da estação — Asuma continuou, como se lesse um folheto turístico. —, há tradições de preparar alimentos especiais com a colheita, usar máscaras de animais e divindades, não apenas para diversão, mas também para afastar más energias e garantir boas plantações na próxima estação. No geral, eles passam o dia celebrando, e à noite há um show de fogos de artifício e balões para encerrar.
A tradição era admirável, não parecia ser tão ruim assim.
Se não fosse pelo excesso de gente mascarada que eu estava vendo.
Por todo lado, rostos ocultos. Sorrisos escondidos atrás de madeira pintada e tecido. Olhos observando através delas. Máscaras de raposa, ganso, javali, corvos, outros mais complexos, representando as divindades. Meus pensamentos levavam a crer que ele estaria aqui, camuflado na multidão, me observando abaixo de uma máscara de javali.
— Kakashi está de acordo com o festival, não está? — Guy sorriu para mim, buscando uma confirmação que eu não tinha intenção de dar. — Perfeito! Então agora precisamos encontrar máscaras para todos nós! Para nos integrarmos ao espírito da coisa!
O grupo entrou em acordo, sem minha consulta. Eu os acompanhei, mantendo meu ritmo arrastado, ficando alguns passos atrás como parte da sombra deles. Enquanto eles se maravilhavam com as decorações, eu analisava com normalidade: balões pintados com desenhos de animais, bandeiras coloridas cortadas em formato de folhas, barracas de comida exalando aromas de vegetais que claramente haviam sido colhidos de suas próprias hortas.
E a música ressoava dentro da minha cabeça, torturando meus tímpanos com flauta e tambores.
Crianças mascaradas e vestidas com kimonos corriam como pequenas pragas entre as pernas dos adultos, seus risos fazendo parte da melodia. Famílias andavam de mãos dadas, casais trocavam sorrisos apaixonados, idosos sorriam com expressões pacíficas. Todos felizes. A felicidade deles era tão fácil — ridícula —, que me causava inveja.
Tolice, pensei, reprimindo o sentimento com força. Sentir inveja daquilo era tolice. Pudesse ser natural para eles, não para mim.
Eu não deveria ter vindo.
Fixei o olhar no grupo caminhando à minha frente, falando sem parar. Eles riam de alguma gracinha que Guy fez — mais animados do que antes. O que eu era nesse grupo? A culpa não era deles. A distância foi causada por mim. Eu simplesmente não encontrava ânimo nenhum, para nada que fosse a vida real. Nada de celebrações. Nem risadas.
Suas risadas eram mais tortuosas que a música, porque me lembravam que eu não era capaz do mesmo — de rir, de me sentir feliz, de passar mal por tanto gargalhar, de lacrimejar pelas risadas e não pelo choro.
Olhando agora, eu nunca me sentira tão deslocado quanto naquele momento.
Enfiei as mãos nos bolsos da calça. Suspirei, cogitando a ideia de ir embora durante a distração deles. Mal pude terminar o planejamento quando uma coisa me puxou pela manga, me arrastando para a escuridão de um beco entre duas barracas. Fui girado e pressionado de costas para a parede, o som do impacto omitido pelo barulho do festival.
A adrenalina surgiu e sumiu num piscar de olhos quando percebi quem era.
— Demorou para aparecer. — Comentei, mantendo minha plenitude.
— Sentiu minha falta? — Otto sussurrou curioso, como se a resposta importasse. Suas mãos enluvadas apertavam levemente meus braços.
— Sabe que não. — Me recusava a dar corda para maluco. A verdade mantinha um limite. — Você nos seguiu ou só estava passando por aqui?
— Bem... — Ele hesitou, sua cabeça pendendo para o lado. — Você quer que eu dê uma resposta sincera?
— Quero que solte meus braços. — Rebati.
Seu toque transmitia a urgência que ele tinha em não me perder, pelo menos para que eu não me afastasse demais.
— Desculpe. — A ordem foi obedecida de imediato, suas mãos se afastando como se temesse me ferir.
Ele não recuou, mantendo aquela curta distância que invadia meu espaço pessoal. Eu permaneci contra a parede, cruzando os braços para reforçar a postura relaxada.
— Eu só estava esperando uma deixa para te salvar. — Otto justificou.
— Me salvar? — Não contive o sarcasmo. — De que? Do tédio?
— Você não parecia nem um pouco afim de estar aqui. — Ele explicou, assumindo um tom submisso que era estranhamente convincente. — Principalmente com eles. Quer voltar para o festival? Para o barulho e as perguntas?
Ele se inclinou na minha direção, deixando um espaço de uma palma entre nossos rostos.
— Ou prefere vir comigo?
— No que você seria melhor que eles? — Perguntei, abrindo uma brecha para a curiosidade.
Eu sabia, mesmo doendo admitir, que ficar sozinho naquele estado era uma péssima ideia. Quem sabe uma companhia, mesmo a mais doentia, fosse preferível à minha própria.
— Sou menos barulhento. — Otto ergueu os dedos, conforme falava. — Sei do que você precisa melhor do que eles jamais saberão. E, por último, mas não menos importante: eu sempre sigo suas ordens, Kakashi. Por mais que você seja grosseiro comigo. Ainda que me machuque.
Ou seja, um cãozinho obediente.
Leal até o fim, independente de como eu o tratasse. Que tolice da parte dele. Era a coisa mais tentadora que alguém havia me oferecido em anos.
Analisando a situação difícil, eu desviei o olhar para o fluxo de pessoas. Eles me trouxeram aqui — Guy, Asuma, Kurenai, Genma — porque eles não queriam me ver trancado no apartamento. Generosos e incapazes de me esquecer. Suas intenções sempre foram as melhores.
E na minha frente, não parando de me olhar, eu tinha um pet. Um admirador obsessivo, que provavelmente se jogaria de um penhasco se eu desse a ordem certa.
“Humor do Kakashi”. Lembrei da fala do Guy. Eu me zanguei com aquelas palavras, por mais que não fosse a intenção dele. E, ainda que eu fingisse não ter ouvido, não gostei de ter sido tratado como um caso perdido de mau humor. Eles sequer notaram. E se notaram, não disseram nada.
Entre um grupo barulhento e bem-intencionado, e uma única pessoa irritante, doentia e focada em mim, o resultado era óbvio. Decidi optar por aquele que menos me irritava e era menos propenso a caçoar de mim.
— Tá. — A palavra saiu como um decreto, curta e final, sem emoção. — Vou com você.
Nem precisava observar demais para notar que ele ficou feliz em excesso. Sua mão agarrou a minha e me puxou para fora do beco sem dar a chance de repensar a decisão. De volta à multidão, seguimos em uma direção oposta à do meu grupo.
— Tem ideia de para onde estamos indo? — Perguntei, permitindo ser arrastado pela correnteza humana.
— Quase. Vi várias barracas de comida nesta direção quando estava… observando. — Ele respondeu sem omitir a animação na voz. Até tentou escolher a palavra certa, mas o dano estava feito. — Vai ser tipo um encontro.
— Nós não estamos em um encontro — Declarei imediatamente, estabelecendo o limite.
— Por isso eu falei que é tipo um. — Ele rebateu rápido demais.
Espertinho.
A essa altura do jogo, ele sabia como contornar minhas defesas com sua teimosia e quais modos de me provocar. Contra tudo o que eu relutava, eu acabei seguindo a brincadeira.
Me questionei sobre onde ele estaria me levando. Repensando na decisão, também me questionei sobre por que eu estava começando a preferir sua companhia desequilibrada do que a normalidade dos meus colegas.
— Não me faça arrepender da minha decisão. — Avisei.
— Não irei. — Ele prometeu. O aperto da sua mão não afrouxava por um segundo sequer. — Por aqui.
Me deixei ser arrastado em outra direção. Considerei me soltar no chão, só para não me dar o trabalho de andar mais. Quando entramos em uma rua mais calma, eu soltei nossas mãos em um puxão. Bastava de tanta intimidade.
— Dois palitos de peixe. — Ele ordenou na barraca, assumindo uma autoridade que não usava comigo. — Para viagem.
Mesmo sem sua mão em mim, eu sentia o calor do seu olhar como um toque físico. Ele me observava com atenção, tudo sempre bem analisado. Um cuidado possessivo que deveria ser um alerta, mas que, em vez disso, eu só achava engraçado. Ele temia me perder. A ideia era divertida de forma irônica.
Reparei depois que ele comprava a comida, segurava as sacolas, porém não comia, muito menos me oferecia.
— Como está indo a leitura? — A pergunta soou casual, só que nada sobre ele era casual.
— Bem. — Dei de ombros, mantendo a naturalidade. — Ren fez um jardim para Emiko.
— Oh, essa parte é muito boa. — Ele parou quando comecei a ficar mais para trás na caminhada. Esperou que eu estivesse ao seu lado, então caminhamos juntos, seu corpo sempre bem posicionado para manter a proximidade. — Já leu o que acontece depois disso?
— Já. Eles desfrutam bastante do jardim. — O que é claro, tinha outro significado. Observei as sacolas com ele. — Não quer ajuda com isso?
— Não. — A recusa foi imediata, porém gentil.
Entendi sua mensagem. Ele era o provedor e o guardião. Mas então mudou, aplicando um tom perigosamente suplicante:
— Mas se quiser me dar sua mão, eu aceito.
Ele estendeu a mão livre, a distância mínima devido ao fluxo de pessoas na rua. Olhei para ela, a luva que escondia sabe se lá o que, e ergui o olhar para o dele. Desviei disso e prossegui com a caminhada. Uma rejeição não dita.
Ele aceitou. Sua mão abaixou e ele acompanhou minha caminhada, sem mágoa, apenas com a paciência de um monge — a aceitação de um homem que parecia disposto a esperar uma eternidade por uma migalha do meu consentimento.
Essa rendição, toda essa devoção incondicional, começava a mexer comigo de uma forma assustadora, mais do que qualquer pressão que ele pudesse colocar.
— Que saco. — O resmungo de Otto me fez achar que era por causa da rejeição.
Entretanto, seu olhar não estava em mim e ele tinha parado de caminhar. Parei também, vendo que a raiva do seu corpo tinha um bom motivo.
Guy, Kurenai e os outros, usando máscaras do festival, procuravam entre a multidão. Me procurando, para ser mais exato. Antes que meu próprio instinto — aquele resquício envergonhado de lealdade — pudesse me fazer levantar a mão ou dar um passo em sua direção, um braço forte envolveu meu torso e me puxou com possessividade. Fui carregado dali para a escuridão de outro beco, saindo em mais uma rua de barracas festivas.
— Eu posso andar, sabia? — Protestei, meus pés arrastando no chão.
A frase não foi ignorada. Otto me soltou, somente para poder pegar na minha mão de novo e me arrastar através da multidão, para longe deles e de qualquer resgate. Seu aperto tinha mais força. Eu não lutei contra, nem me esforcei.
Sua linguagem corporal era um livro aberto de nervosismo. Tudo nele parecia tensionado, não como um assassino, mas como uma fera tentando proteger sua presa. Ele me guiou pelas ruas cada vez mais desertas, atravessando os limites da aldeia, onde as casas ficavam para trás e os campos nos recebiam com cheiro de terra molhada.
Engraçado. Observando aqueles milharais capazes de esconder armadilhas e a floresta densa ao longe, eu seria um alvo fácil aqui. Meus instintos de caçador, sempre tão afiados, deveriam estar em total alerta agora, procurando sinais de perigo nele e no cenário. No entanto, naquele dia, eu não tive a menor vontade. A vontade de lutar pela minha vida não se manifestou.
— Estamos quase chegando. — Otto anunciou, mais tranquilo agora.
Ele olhou para trás, e pudesse ter reparado na minha tranquilidade, a falta de relutância, pois suspirou em satisfação.
— Vai ser legal. Prometo.
Contornamos um lago grande e escuro, a água parada refletindo a noite estrelada sem nuvens. Ele finalmente parou sob uma árvore solitária, seus galhos não totalmente despidos, segurando folhas cor de abóbora. O local era isolado e perfeitamente escolhido. Ele soltou minha mão e se virou, buscando alguma reação, sua respiração meio acelerada pela emoção.
Não falei nada. Queria ver no que ia dar.
Otto foi se sentar próximo à árvore. Ele deu leves tapinhas no espaço ao seu lado, um convite sem palavras — ou uma ordem discreta. Sentei no local indicado, o corpo encostando no tronco atrás de nós. Assisti a ele remover os itens das sacolas, organizando-os na grama.
— Trouxe tudo o que você gosta. — Ele me contava animado, carregado por devoção. Poderiam ser palavras e gestos inocentes, se eu não soubesse o que fazia. — Nada de doces, pois sei que você não gosta.
Eu não me dei ao trabalho de perguntar como ele sabia disso. A resposta, ambos sabíamos. Permaneci em silêncio, vendo o que fazia.
Quando tudo foi organizado diante de mim, senti algo além da desconfiança e do desconforto. Era como se ele tivesse preparado uma oferenda. Na visão distorcida dele, perceptível através dos atos, eu não era apenas um homem, eu era uma divindade que ele precisava acalmar, alimentar — possuir. Um ídolo mortal.
O quão ruim deveria ser sua vida para ele me elevar nesse pedestal? O que havia de tão vazio nele, para que eu lhe desse essa sensação de vida? Questões estas que eu gostaria de fazer, se não fosse pelo seu disfarce. Eu não poderia perguntar demais sobre ele, embora ele soubesse quase tudo sobre mim. Graças a isso, me tornei uma figura de devoção. O pior de tudo, era que uma parte de mim começava a se perguntar como seria viver nesse altar.
Minha atenção foi para Otto quando ele suspirou satisfeito. Ele se encostou na árvore ao meu lado, nossos ombros ficando a poucos centímetros de um contato.
Eu me senti mal de verdade. Aquela vista e o pequeno jantar improvisado deveria ser dedicado a alguém capaz de retribuir seus sentimentos extremos, de devolver uma fração daquela devoção doentia. Não a um homem como eu.
— Não está com fome? — Otto ficou preocupado. — Posso buscar outra coisa, se desejar. Qualquer coisa.
Pior que eu sentia fome. O trajeto de duas horas me deixou faminto. Analisei os alimentos e peguei um espeto de frango grelhado, girando o palito entre os dedos. O aroma do tempero fez meu estômago roncar.
— Você não vai comer também? — Perguntei a ele.
Sua cabeça estava levemente inclinada para o lado, enquanto me assistia. Um hábito seu que eu notava ser frequente, e que, de forma irritantemente charmosa, fazia-o parecer um cãozinho curioso e esperançoso.
— Ah, claro. — Ele pareceu surpreendido, como se tivesse se esquecido de sua própria necessidade física em meio à missão de me servir. Ele pegou outro espeto.
Ficamos ali parados, os dois segurando a própria comida. Duas máscaras, nenhum de nós disposto a ser o primeiro a abaixar a guarda e revelar o rosto — embora eu tivesse suspeitas de que ele já tivesse visto o meu.
Ao longe, a música e os risos do festival nos alcançavam em volume baixo, um mundo de alegria normal da qual estávamos excluídos. Aqui, sozinhos, nosso mundo tinha a melodia dos grilos e das cigarras. E, pensando bem, o som dos grilos me soava mais honesto e confortável.
— Que tal… — Otto se pronunciou. — … se nos sentarmos de costas um para o outro?
Ele parecia ter lido meus pensamentos, oferecendo uma solução simples e eficiente, baseada em confiança.
Àquela altura, nada mais me afetava. Concordei com um leve aceno. Otto se arrastou na grama e eu me virei, sentando de costas para ele, o calor dele pressionando levemente as minhas costas. Parecia íntimo pelo toque, em oposto a isso, era impessoal pela falta de olhares. A bebida e a comida ficaram ao nosso lado.
Não houve uma troca de palavras nessa hora. Eu toquei minha máscara e a abaixei somente o bastante para provar do frango grelhado. O gosto salgado tinha o toque perfeito de tempero. Mastiguei sem pressa, degustando do alimento. Através do contato das nossas costas, senti Otto se movendo e se alimentando também.
Senti um toque frio no meu ombro. Sua mão estendia um copo de saquê por cima dos nossos ombros. O gesto não ignorava o fato de que não podíamos nos ver. A última vez que bebi álcool foi no meu aniversário. Naquele dia, bebi na esperança de afogar toda dor que sentia e acabei na minha cama, sem lembranças do que ocorreu. Agora, a necessidade era diferente.
Aceitei o copo, nossos dedos não se tocando, a transferência sendo feita apenas através do recipiente gelado.
— Quer conversar? — Otto perguntou.
Levei o copo aos lábios e arrisquei um gole pequeno para iniciar. A bebida esquentou pouco ao descer pela garganta.
— Podemos ficar em silêncio por um tempo? — Pedi.
A resposta não veio em palavras. Senti o peso de sua cabeça repousar contra a minha, um ponto quente e sólido de contato através dos cabelos e das faixas de tecido. Outra vez, isso se tornava bastante íntimo, mas também compreensivo. Ele se recostou em mim, confiando seu peso ao meu, e eu aceitei.
Terminei o frango, o palito descartado em uma das bolsas vazias. Peguei um bolinho de arroz. A garrafa de saquê foi estendida para mim novamente sobre o ombro e eu aceitei isso e o que mais me oferecesse.
A falta de insistência e gritos me relaxava. Soltei um suspiro através das narinas após outra comida, relaxando o peso acumulado das últimas horas. Pousei minha cabeça na dele. Podia ser o efeito do álcool relaxando e apagando todo o estresse, contudo, eu não me importei.
Na aldeia, os primeiros fogos de artifício subiam e explodiam no céu, nos iluminando em cores variadas. A comemoração do povo foi bem audível dali. Assistimos ao espetáculo de explosões, onde um ou outro fogo de artifício brilhava com formato de algum animal.
Tinha beleza naquela vista e em como o lago sereno refletia as luzes feito um espelho natural.
De modo tranquilo, recordei das palavras de Otto na floresta. Seu desejo doentio de me fazer sentir tão vivo quanto eu o fazia sentir. Eu reparava em seu esforço nisso aqui.
Virei o restante de saquê na boca, soltando a garrafa perto da bolsa de lixo e sentindo a bebida descer mais quente e mais saborosa.
— Posso te pedir uma coisa? — Decidi perguntar.
— O que quiser. — Uma afirmativa com tom de rendição.
— Quero sentir seu rosto. — Declarei, talvez meio afetado pela bebida. — Se não posso te ver, ao menos posso senti-lo?
A curiosidade foi trazida à tona pelo álcool, só que eu era sincero comigo mesmo para confessar que nem toda a culpa era da bebida. Eu estava sóbrio o suficiente para saber que queria isso.
O silêncio dele durou poucos segundos.
— Pode. — Sua resposta me levou a entender que o peguei de surpresa. — Como quer fazer isso?
— Cobrindo meus olhos. — Eu já me adiantava, minha mão pegando a borda da bandana.
Puxei o tecido para baixo, mergulhando meu olho bom na escuridão absoluta. Ajustei minha máscara sobre o nariz e a boca. O mundo visual morreu e meus outros sentidos se elevaram.
Através das narinas, detectava a grama, a fumaça dos fogos de artifício e o álcool impregnado em nós dois. Apoiei as palmas das mãos na grama, me ajustando para ficar apoiado na árvore novamente.
Ouvi Otto se mover na minha frente, a grama cedendo sob seu peso, depois o som de suas roupas enquanto ele se posicionava. Ouvia sua respiração mais calma agora, embora… não ouvisse seus batimentos — supus que o motivo fossem as explosões abafando.
Estendi as mãos na escuridão. Assim, as dele as encontraram — sem luvas, somente sua pele tocando a minha, quente e áspera. Seus dedos se entrelaçaram nos meus, guiando-as para seu rosto enigmático.
Minhas digitais tocaram primeiro as maçãs do rosto, a pele lisa sob o toque. Eu as explorei com curiosidade, traçando caminho pelos ossos altos, subindo até onde as pálpebras deveriam estar, fazendo tudo com cuidado para não machucar, como uma carícia. Meus polegares deslizaram nas sobrancelhas, sentindo a textura dos fios. Ele estava imóvel, um sacrifício diante do altar.
Minhas palmas pousaram em suas bochechas, e meu polegar direito iniciou um trajeto lento pela ponte do seu nariz, descendo até pousar, finalmente, sobre a linha dos seus lábios levemente entreabertos, por onde senti sua respiração fina. Meus dedos passaram por sua mandíbula, sentindo a inquietação dele no músculo contraindo. Não havia cicatrizes, nenhuma ruga ou qualquer traço que tornasse seu rosto mais atual e diferente da foto dos registros.
Quando meus dedos passavam novamente por seu queixo, o toque da sua mão ressurgiu, segurando com tamanha gentileza de quem temesse quebrá-los sem querer. Ele trouxe minha mão para sua boca e depositou um beijo em meus dedos. Sem pressa, ele foi lento e propositalmente quente, transferindo esse calor do meu braço para o restante do corpo. Uma onda de arrepio me inundou, e eu permiti — por curiosidade e porque, de algum modo, pensava que ele tinha merecido esse pedaço da minha atenção.
Sentia que me observava através da escuridão, a sensação de sua adoração aumentando gradativamente. Ele beijou a palma da minha mão, outro arrepio, mais intenso dessa vez. Sua boca transmitia desejo, e eu estava começando a gostar dessa sensação. Não protestei quando seus lábios tocaram meu pulso, sentindo minha pulsação acelerada, meu próprio corpo me denunciando. Também não reclamei quando desceram pelo meu antebraço. Beijos que afirmavam uma posse e traçavam uma trilha de desejo pela minha pele.
Sem surpresa, senti o calor dele se aproximando do meu corpo ainda coberto. Sua respiração quente e acelerada bateu contra o tecido da minha máscara, e sobre o tecido que escondia mais do que minha face, sua boca encontrou a minha. Não somente um beijo, uma súplica.
E eu retribuí.
Pressionei minha boca contra a sua através do tecido, um gesto que aceitava o que eu não queria dizer. Ali, o beijei como um homem que me entendia de modo que eu não fazia ideia.
Ele me beijava como seu divino, eu o beijava como minha última esperança de sentir vida.
Notes:
Notas: Não é querendo explanar ninguém, mas Kakashi já tava na intenção disso acontecer. Não podemos esquecer que ele é tarado do jeito dele.
Chapter 7: Obito – Desire
Chapter Text
O meu inferno, composto por angústias e ódio, se transformou no mais esplêndido dos paraísos.
Através do tecido de sua máscara, senti a maciez de seus lábios encaixando nos meus. Tão próximo, pude sentir seu perfume — misturado ao aroma do saquê — invadir minhas narinas.
Meu amado Kakashi. Meu e somente meu.
Permaneci segurando sua mão, a que havia guiado até o meu rosto — um rosto que precisei modificar com jutsu para não erguer suspeitas. Nossos dedos se entrelaçaram, e eu apertei com força quando prometia em pensamentos que jamais quebraria esse laço e que não deixaria nada, nem ninguém, interromper nosso destino.
Entretanto, o paraíso, uma vez que foi provado, aguçou o apetite pelo êxtase total. Um anseio insano por mais além do tecido da máscara. Contraí os dedos da mão devido ao impulso incontrolável de arrancá-la, não somente ela, como tudo o que nos separava de um contato total.
Eu almejava possuí-lo não como um admirador comum, mas como um homem possuiria seu divino. Provar do seu néctar, me desfrutar do suor da sua pele, beijar e adorar cada parte do seu corpo para repetir tudo do início de novo.
Kakashi era o dono da minha vida, o motivo da minha felicidade. Jurei, enquanto o beijava, que um dia, muito em breve, não haveria mais máscaras entre nós. Somente seria aquilo para o que éramos destinados a ser: duas metades reunidas, pertencendo um ao outro.
No entanto, como todas as coisas perfeitas, nosso momento foi cruelmente interrompido pela passagem do tempo.
— Preciso voltar para eles. — Kakashi me trouxe de volta à realidade que eu tanto odiava.
Eles. Pensei com repulsa. Só foram úteis para entregá-lo a mim, visto que eu tive que mandar o panfleto do festival para a mula verde. Do grupo, eu suportava somente Kurenai, embora fosse pouco — pois nela, eu via sua preocupação sincera por Kakashi, sem sinais de uma intenção amorosa.
Antes que Kakashi fosse erguer sua bandana, levei suas mãos de volta aos meus lábios mais uma vez. Eu beijei seus dedos, seus dorsos, seus pulsos onde a vida pulsava sob a pele, todos os beijos carinhosos, devocionais.
Ajustei minha máscara, enquanto ele arrumava a própria sobre seu olho. Segurei sua mão entre as minhas, tamborilando os dedos pela ideia de prendê-lo ali.
— Você não precisa ir agora. — Supliquei, soando mais desesperado do que deveria. Mantive minha mão esquerda presa na dele, enquanto com a direita, alcançava a última torta de abóbora, segurando-a como uma oferta. — Nós nem provamos a torta. É feita com frango. Você… você pode gostar.
— Estou cheio por causa do saquê. — Ele apontou com a cabeça para a bolsa que transformamos em lixeira, lotado dos restos do banquete que eu lhe oferecera. — E de todas as outras coisas que você me deu. Dessa forma, não vou conseguir sequer me mover amanhã, muito menos trabalhar.
Suspirei derrotado, abaixando os ombros. Devolvi a torta ao resto das outras comidas. Eu acabei esquecendo dessa diferença entre nós: eu podia comer o quanto eu quisesse e nada me aconteceria, por outro lado, Kakashi era humano. Frágil. Mais delicado. Precisava ser cuidado.
Kakashi, diferente das outras vezes, não tinha palavras frias nem grosseiras. Só parecia cansado — outra diferença entre nós. Como eu adoraria deitar-me com ele em sua cama, na escuridão do seu quarto. Só para sentir sua respiração se acalmando, seu corpo relaxando contra o meu, desfrutando de um sono profundo e protegido sob meus olhos atentos. Seria o melhor dos paraísos para um demônio como eu.
— E você também. — Ele ressaltou. — Nós temos um compromisso com a Folha, Otto.
— É. A Folha. — Eu concordei sem ânimo.
A Folha? A mesma Folha que cresceu na hipocrisia? A mesma que condenou e apedrejou Sakumo Hatake, um pai, um herói, por ter escolhido salvar seus companheiros — um salvamento que trataram como crime, levando-o a um suicídio, assim, deixando seu filho, meu Kakashi, para ficar sozinho no sofrimento. A mesma Konoha que, com seus anciãos de merda, nunca considerou a morte de Rin honrosa o bastante para merecer seu nome no Memorial.
Eu não podia ficar tão irritado na frente dele, não podia deixar de ser Otto.
Naqueles pensamentos, percebi uma coisa. Rin. Como eu pude esquecer dela? Não foi por maldade. Nunca. Contudo, a minha obsessão por Kakashi, nosso romance, toda a necessidade de possuí-lo, de curá-lo, acabou me distraindo.
Esperava que ela não estivesse chateada comigo, se estivesse assistindo isso de algum lugar.
— Otto? — Kakashi chamou, trazendo-me de volta para ele, sempre de volta para ele. — Preciso que me solte.
— Desculpe. — Acariciei o dorso dele com o polegar. — É difícil te deixar ir.
Meus olhos desceram para nossas mãos entrelaçadas. A pele dele era tão quente entre as minhas, tão mais vivo do que eu. Eu não queria ceder, muito pelo contrário, queria me agarrar a ele com toda a força que tinha para mantê-lo comigo para sempre.
Mesmo assim, eu o soltei. Minhas mãos se tornaram frias sem o calor dele.
Porque assim como ele tinha seus compromissos com um vilarejo que não merecia sua dedicação, eu tinha os meus. Um plano. Uma missão sagrada. Garantiria um mundo melhor para ele. Um mundo sem a dor de Sakumo, sem o sacrifício de Rin. Um mundo de verdade, onde o amor não seria punido e a lealdade não seria questionada. Um mundo perfeito.
Eu me levantei primeiro. Kakashi se ergueu em seguida, diferente do habitual. Ele cambaleou e eu ergui as mãos, pronto para segurar seus braços, sua cintura, qualquer parte dele que eu pudesse tocar para estabilizar. Mas ele já havia se firmado, endireitado a postura.
Ele levou a mão à têmpora, pressionando-a levemente. Essa cena me deu vontade de substituir a sua mão pela minha, de massagear a tensão que eu mesmo, e o saquê, havíamos ajudado a criar.
— Está tudo bem? — Perguntei preocupado. Qualquer desconforto dele era meu para resolver, meu para absorver.
— Sim. Foi só a bebida. — Ele olhou os pacotes de comida, depois as garrafas vazias de saquê. Daí, me olhou com uma expressão confusa. — Como você está tão bem?
Células de Hashirama. Eu mordi a língua para não dizer a verdade. Meu corpo era capaz se metabolizar toxinas e regenerar feridas que matariam um homem comum. Isso incluía o álcool, que poderia embebedar ele, enquanto eu permanecia perfeitamente sóbrio para apreciá-lo em sua embriaguez.
— Estou acostumado. — Menti. Odiava ter que fazer isso, mas era necessário para meu disfarce. — Quer ajuda para andar?
— Não precisa. — Kakashi deu alguns passos hesitantes, testando seu equilíbrio, então endireitou sua postura. — Estou ótimo, sério. Boa noite.
A despedida foi uma facada em meus sentimentos. Ele estava mesmo indo embora. Sozinho.
— Não quer companhia? — Eu ofereci, soando mais desesperado do que gostaria. — Está escuro. Não posso só te acompanhar? Você parece desnorteado demais para andar sozinho por essas matas.
Kakashi deu poucos passos. Abaixou a cabeça, os ombros subindo e depois descendo por um suspiro que soltou. Não se virou, mas ergueu a mão, os dedos indicador e do meio sinalizando para eu me aproximar.
Sorri por baixo da máscara, apressando os passos até ele e deixando a bagunça para trás — que eu voltaria para limpar depois, caso lembrasse.
Nós caminhamos lado a lado. Eu não sabia se havia ultrapassado o limite de toques por hoje, porque queria muito voltar a segurar sua mão. Adentramos no milharal, a mata de caules mais alta do que a gente. No céu, os últimos fogos de artifício do festival estouravam, iluminando nosso trajeto.
— Então… — Decidi perguntar. — Já está pronto para namorar agora?
Ele não diminuiu o passo. Seu olhar permaneceu fixo no caminho à nossa frente.
— Não iremos namorar, Otto. — A declaração foi clara.
Não fiquei mal pela rejeição. Eu não queria parar de fazer perguntas. Precisava ouvir sua voz para ter em minha memória quando estivesse longe.
— Foi seu primeiro beijo? — Eu olhei-o durante nossa caminhada.
— Isso é relevante? — Ele rebateu rapidamente. No entanto, a defensiva durou pouco. Kakashi acabou assentindo. — Sim, foi.
Para me surpreender, ouvi dele:
— Por que a pergunta? Foi… ruim?
Um sorriso impossível de conter tomou meu rosto. Ele se importou. Mesmo com todas as negações, Kakashi quis saber minha opinião.
— Você foi perfeito. — Meus olhos, escondidos mas não cegos, devoravam cada linha de seu corpo na penumbra. — Sempre é.
Ele devia ter sentido o peso do meu olhar, pois virou o rosto para me encarar sem parar de caminhar.
— E você? — Perguntou, parecendo mais interessado. — Foi seu primeiro beijo, Otto?
O nome falso soou como uma carícia vinda de seus lábios. Mesmo sendo uma mentira, eu amava ouvi-lo chamar porque me sentia dele.
— Você é meu primeiro. — Confessei. Avancei meio passo para mais perto dele. — Eu fui do seu agrado?
— Não fale assim. — Ele repreendeu, sem a presença de alguma raiva.
— 'Assim' como? — Provoquei. Eu entendi perfeitamente. E adorava cada segundo.
— Como se nós tivéssemos feito algo mais significativo do que um único beijo. — Ele explicou, cauteloso com suas próprias palavras.
O clima noturno ficou mais quente de repente.
— E não poderíamos fazer? — Rebati as palavras. Minha voz baixou para um sussurro sugestivo. — Você sabe, Kakashi… se um dia desejar experimentar aquilo que lê, tem a mim. Estou aqui. Pronto para ser sua cobaia.
E eu sabia como amaria ser usado por ele. De qualquer maneira que Kakashi quisesse. Ser seu instrumento, seu brinquedo, seu aluno em assuntos de cama e desejo, o que mais desejasse. E, nesta altura do campeonato, pela maneira como seu corpo não se afastou e pelo modo como passou a controlar a respiração, Kakashi também sabia disso sobre mim.
No limite do milharal, eu parei de andar, Kakashi agora seguindo sozinho para encontrar com seus colegas. Não teve uma despedida porque não precisávamos — sabíamos disso.
— Pense bem nisso. — Eu falei, deixando a última frase ir com ele.
○○○
No meu passado distante, aquele que eu esqueci por muito tempo, minha avó tinha me presenteado com uma câmera fotográfica. Um presente comum e perfeito para um garoto explorar a vida. Lembrando disso que eu decidi comprar uma nova — roubar, na verdade.
Sabia que acabaria passando muito tempo fora, executando o plano que poderia consumir o que restou de mim. Precisava de algo para me manter são, uma âncora. E eu escolhi ele, obviamente. Precisava de lembranças físicas do Kakashi, não somente para não esquecer, como também para lembrar o motivo pelo qual eu estava fazendo aquilo.
A primeira foto foi tirada em uma invasão comum. Entrei no seu apartamento durante a madrugada, vendo-o em seu sono profundo. Kakashi deitava de costas, seu rosto coberto pelo lençol até a metade. A franja prateada caída sobre sua testa, seus cílios longos tornando tudo mais perfeito. Aparentava ser o mais belo dos anjos, uma escultura de gesso, tão belo que doía.
Essa beleza mexia comigo de maneira perturbadora. Eu adoraria pousar a mão sobre seu peito para sentir e apreciar, no entanto, não podia ficar e arriscar tanto. Tirei a foto, segurando um suspiro.
De manhã, fiquei entre os galhos mais altos de uma árvore com a câmera em mãos, ajustando a lente para capturar todos os movimentos sem ser notado. Kakashi treinava como sempre. Punhos enfaixados golpeando um tronco de madeira. Socos, depois uma cotovelada, depois um chute, e voltava a repetir.
Você nunca veria alguém ficar tão atraente só por estar concentrado. Era uma coisa somente dele. Kakashi contraía os lábios abaixo da máscara quando errava o golpe por meio milímetro. As veias destacadas em seus braços. Ninguém ficava tão sexualmente intenso quanto Kakashi em seu estado de concentração.
Golpe após golpe, o suor começou a surgir em sua pele, primeiro como uma camada suave em sua testa, depois brilhando nos músculos dos seus braços. Sua camisa fina ficou colada ao corpo, destacando as linhas do abdômen, a linha da cintura, e melhor, marcando as entradas que levavam para dentro da calça. Eu me apressei para registrar o máximo que pude, correndo o risco de quebrar a câmera de tanto que eu apertava.
Registrei o ângulo em que exibia suas costas ao socar o tronco. A gota de suor escorrendo desde sua têmpora até a borda da máscara.
Essas imagens seriam meu maior tesouro. O registro alimentava minhas fantasias, a esperança de que um dia, esse suor seria causado por mim, toda essa concentração seria direcionada a mim, e esse corpo me pertenceria por completo.
Gostaria muito de permanecer apreciando a vista, contudo, tive de me forçar a desviar o olhar. O mundo necessitava de mim. Dando uma última olhada, eu me teleportei para a minha dimensão.
O meu espaço não era deserto por completo. Onde eu ficava, tinha o espelho quebrado — que eu não cheguei a limpar — um conjunto de disfarces em uma arara, um arsenal de armas, e minha mesa, onde eu costumava planejar o destino do mundo.
As fotos reveladas pousaram sobre a mesa, todas exibindo Kakashi em ângulos diferentes: Kakashi adormecido; Kakashi desferindo um chute no tronco, o tecido do uniforme prensado e destacando sua coxa; Outra dele bebendo água de sua garrafa, exibindo o pescoço suado.
Eu queria colar as fotos em todos os lados daquele lugar, para que seus olhos — entediados, concentrados — me observassem, me desejassem também, não importando onde eu olhasse.
Foco, Obito. Eu segurei uma das fotos, na qual ele dormia. Akatsuki primeiro. Depois a diversão.
As seis semanas seguintes passaram como uma lesma. A mesa se tornou o tabuleiro, a Akatsuki, minhas peças. Descartei os menos essenciais, eliminando possíveis adversários e aqueles que questionavam demais, fracos demais. Convencia Nagato de que eram atrasos para o futuro.
Em troca, trazia novos membros para o grupo, mais motivados por nosso plano, ambiciosos de modo que entendiam o desejo da organização. Estudei suas vidas, e se por um acaso eu visse seu potencial, então o tornava um de nós a todo custo, nem que fosse preciso destruir o restante dos seus laços.
Nesse meio de crimes e manipulações, as fotos de Kakashi permaneciam na mesa, iluminadas por uma única vela — como um pequeno altar. Vê-lo dormir me acalmava, vê-lo lendo seu livro me lembrava da nossa conversa e da sua voz, mas vê-lo treinando me soava como a minha recompensa, onde eu poderia me deitar com ele e apreciar sua beleza mortal.
Em outra manhã, eu retornei para minha dimensão mais ansioso. Teria pouco tempo, no entanto, poderia me dedicar a Kakashi agora. Indo até os trajes para uma troca de disfarce, senti a presença de novos objetos. Espalhados a poucos metros de onde eu estava, uma quantidade preocupante de armas e o pedaço de uma perna. Kakashi tinha usado nosso Kamui.
Me aproximei para averiguar, passando os dedos por uma das lâminas banhadas em sangue fresco — sinal de que tinha sido recente. Era muito sangue. Esperava, sinceramente, que fosse de qualquer outra pessoa que ele pudesse ter matado.
Contudo, o mau pressentimento me levou ao desespero. Corri para a troca de trajes, me atrapalhando um pouco na hora de calçar os sapatos. Troquei a máscara de Madara pela do Otto, a única que ele conhecia e que deveria importar agora.
Me teleportei para as florestas ao redor de Konoha, iniciando uma corrida desesperada entre as árvores. Minha respiração ficou forte, impossível de controlar. Pensava nos piores cenários que deveriam estar lhe acontecendo: Kakashi sangrando, inimigos o cercando, seus batimentos cessando, suas pálpebras se fechando. Não. Não de novo. NÃO PODIA ACONTECER OUTRA VEZ. EU NÃO PERMITIRIA.
Naquele mesmo local de treinamento, eu avistei Kakashi. Eu soltei um respiro de extremo alívio, vendo ajustar sua máscara. Ele estava bem. Ele estava…
Não. Tinha alguma coisa errada.
Tudo estava errado. Sua postura não era relaxada do seu jeito, parecia tensa e reta demais. Ele não caminhava como o meu preguiçoso. Era uma cópia muito mal feita do homem que eu conhecia.
Não pensei. Agi. Atravessei o espaço entre nós numa velocidade que ele não pôde ver até que eu estivesse agarrando seu pescoço e o jogando contra uma árvore. A madeira rachou no impacto, gerando um som satisfatório.
— QUEM É VOCÊ?! — Eu gritei sem me importar com quem ouviria. Que a aldeia inteira viesse. Eu mataria todos. — O QUE VOCÊ FEZ COM ELE?! ONDE ELE ESTÁ?!
Apertei mais, sentindo o terror pulsando em suas veias. Suas mãos patéticas tentaram agarrar a minha para afrouxar o aperto, fraco, insignificante, ele sequer teve algum efeito.
— Eu não… — Sequer era a voz do Kakashi. Só o som de um impostor.
Continuei apertando. Como aquele infeliz tinha tamanha ousadia? Sua cartilagem do pescoço estalou no aperto. Eu quis ouvir o estalo final, o aperto que o mataria por definitivo. Ele deveria ter visto a minha intenção porque desfez o jutsu. O rosto, a postura e o corpo, tudo se desfez para me revelar ser um ninja da Nuvem, seus olhos arregalados pelo pânico.
— O que fizeram com ele? — Questionei mais baixo, frio. Afrouxei o aperto o suficiente para que ele pudesse confessar.
Sua mão saiu das costas com uma única kunai. No ato desesperado e covarde, ele a fincou em meu peito sem surtir efeito. A lâmina atingiu meu lado menos humano, permanecendo lá sem a presença de sangue. Toda a confiança do ninja sumiu, seu rosto se tornando mais pálido e suado, um pavor com cheiro de urina.
— Eu não quero ter que perguntar de novo. — Ergui a mão de Hashirama diante do seu rosto retorcido.
Meus dedos se transformaram, deixando a aparência humana para uma textura de madeira, galhos tortos e pontiagudos brotando dos meus dedos. Ele tentou gritar, embora fosse tarde demais. Os galhos cresceram para dentro da sua boca aberta, forçando caminho para baixo, sem a intenção de buscar informações, só para torturar.
Assisti sem remorso. Seu corpo contorcia em espasmos violentos. Seus olhos arregalados, lacrimejando. Saliva e vômito escorriam pelos cantos da boca, líquido castanho que escorria pelo queixo e pingava na grama. Quando ele começou a ficar pálido demais, e seus batimentos se tornaram mais lentos, eu removi os galhos.
Ele desabou no chão, vomitando o resto de seu desespero. Agarrei-o pelos cabelos, arrancando mechas durante minha fúria, e puxei seu rosto para perto do meu.
— Nós… Nós pegamos ele e os outros em uma armadilha. — Ele tossiu, cuspindo sangue e bile. — Matamos a maior parte deles… e prendemos os outros para extrair informações da aldeia.
A maior parte deles. Caçadores da anbu, pensei.
— E ele? — Não afrouxava a mão em seu cabelo, pronto para arrancar o couro cabeludo. — Está vivo?
— Está. — O homem cuspiu, respirando com dificuldades. — Por pouco.
Fiquei aliviado, embora apavorado pelo que poderia estar acontecendo a ele agora.
— Me diz onde! — Exigi, sacudindo-o como um boneco de pano.
— Por favor, não me mata! — Ele chorou. — Ele e os outros estão em um esconderijo entre dois pinheiros, nas montanhas do sul. Basta procurar uma cachoeira grande e você vai encontrar a entrada.
Cachoeira grande. Dois pinheiros. Sul. Memorizei suas últimas palavras.
Agarrei seu queixo, a mão firme em sua cabeça, então puxei, gerando um estalo final onde seu pescoço foi quebrado. Seu corpo morto desabou no chão.
Eu tinha consciência, apesar de estar furioso. Não poderia deixar o corpo ali para que os ninjas da Folha vissem. Puxei o cadáver para dentro da minha dimensão, assim me livraria dele depois.
Agora, era só Kakashi que importava.
Chapter 8: Kakashi — Oferenda de Sangue
Notes:
Peço perdão caso tenha algum erro. Esse capítulo ficou maior do que deveria.
Chapter Text
O outro soco em meu abdômen veio ainda mais forte, mais doloroso. O ar em meus pulmões foi dissolvido à força, respingos de sangue escapando da minha boca para o chão de pedra. A dor fazia pensar que meus órgãos internos tinham sido esmagados.
— Você ainda não entendeu?! — O shinobi da Nuvem, um parrudo de olhos verde e castanho, rosnou. Sua frustração era notória, devido a minha resistência diante de seus métodos. — Mataremos você de forma lenta e dolorosa se não começar a abrir essa sua maldita boca!
Ofegava, me contorcendo de dor a cada lufada de ar. Eu resistia pois precisava. Meu torso agora deveria estar em tons de roxo profundo, devido a sequência de golpes que recebi. Minha pele agora tinha cheiro de carne queimada, e eu tinha espasmos involuntários pelo uso de eletricidade que ele usou em mim.
Preso por correntes de ferro, meus pulsos doíam por sustentar meu próprio peso, minhas mãos dormentes pela falta de circulação sanguínea, e piorando mais, minhas mãos foram presas de modo que me impediam de formar selos para jutsus. Meus tornozelos também foram imobilizados depois que quebrei o nariz daquele cara com um chute furioso. Em troca desse ato rebelde, recebi uma kunai na coxa esquerda, a lâmina permanecendo em mim para piorar a dor sempre que eu tentasse me mover.
Eu contava cada minuto. Treze horas e vinte e sete minutos desde que fomos emboscados, nossa missão sendo interrompida por seu ataque. Treze horas desde que metade da minha equipe foi morta na minha frente. A outra metade, como eu, foi levada para extração de informações, através de variadas torturas.
— Você… — Eu me forcei a falar, usando o que restava de minhas forças para falar e respirar. — Vai ter que tentar extrair informações de um cadáver…
Cuspi saliva e sangue no chão, falhando em respirar, mas não em encará-lo com desprezo.
— …porque não irei contar nada.
Um rosnado partiu dele, suas sobrancelhas se unindo por revolta. Ele fechou a mão em punho e desferiu o golpe na minha mandíbula, a ponto de jogar meu rosto para o lado. Senti como se tivesse deslocado. A dor absurda apagando minha consciência por poucos — porém longos — segundos. O sabor metálico do sangue aumentou em minha boca. Mais um ponto de dor e agonia.
Eu precisava de um plano, e o tinha em andamento. Ainda que as dores interrompesse os pensamentos mais lógicos, não parava de analisar e supor como eu deveria sair dali. Aquele homem trocaria de turno em minutos, ou até menos. O próximo poderia ser mais manipulável, menos propenso a explosões de raiva.
— Pois bem. — O homem fungou, esfregando o nariz torto com as costas da mão ensanguentada. Com a outra, ele pegou uma katana que estava encostada na parede, a lâmina longa e sinistra se destacando na escuridão do cômodo. — Não se preocupe, Hatake. Nós ainda temos outros seis dos seus ninjas para interrogar. Veremos por quanto tempo sua lealdade resiste quando começar a ouvir os gritos deles.
Não tirei os olhos da arma. A sala era composta por paredes de pedra, como uma pequena caverna, sem janelas, nem outro modo de saída além da porta de metal pesado atrás dele. Meu chakra estava esgotado devido a nossa batalha e o uso excessivo do Sharingan. Agora, meu olho esquerdo se mantinha fechado, para conservar alguma energia. Uma gota de sangue solitária escorreu dele.
Naquela escuridão, eu tentei enxergar o que parecia ser uma ilusão causada pelas pancadas na cabeça.
Primeiro, foram pontos pretos. Manchas escuras que pareciam brotar lentamente da própria garganta do homem, como insetos brotando da terra.
Até que os pontos se solidificaram. E se tornaram dedos.
Dedos longos e pretos, surgindo de dentro do pescoço dele, rasgando a pele e a traqueia como se fosse a coisa mais fácil. Eles se fecharam em um punho cerrado, agarrando a coluna vertebral por dentro e puxando para sair na nuca.
O ninja da Nuvem parou abruptamente. Sua face de confiança se tornou uma de extremo horror. Suas sobrancelhas se ergueram, seus olhos arregalaram, enquanto soltava um último som através da sua garganta aberta que jorrava sangue.
Seu corpo desmoronou no chão de pedra, dando pequenos espasmos nervosos em seus últimos segundos de vida, e seus pulmões, ainda tentando respirar pelo ferimento.
Sem tempo para vê-lo morrer, as correntes se partiram com um movimento único acima de mim. Meu corpo pesado e dolorido cedeu e eu desabei, no entanto, não colidindo com o chão.
Braços firmes me receberam e me envolveram com um aperto carinhoso. Eu nem precisava ver para saber quem era, somente o modo como me tocava já o denunciava, além disso, ele tinha um forte cheiro de sangue e uma coisa a mais que o tornasse familiar para mim.
Fiquei aliviado por ter minhas mãos livres. Toquei meu estômago por dentro da camisa, sentindo a pele inchada e latejando sob minhas digitais. Um toque veio para meu rosto. Suas mãos enluvadas, porém encharcadas de outro sangue. O contato gélido me fez perceber, com um pequeno choque, que minha máscara havia sido arrancada durante minha tortura. Eu estava nu, não no sentido literal, mas me sentia exposto diante dele.
Seus polegares traçaram círculos de sangue pelas maçãs do meu rosto, uma análise misturada a uma carícia perturbadora até sua mão segurar meu queixo, erguendo meu rosto para ele. Encarei a escuridão onde seus olhos deveriam estar.
— Estou aqui agora. — Dessa vez, a voz de Otto surgiu com uma firmeza fria e quente ao mesmo tempo. — Vai ficar tudo bem.
Suas mãos desceram para meus cotovelos, sustentando o peso do meu corpo exausto. Eu o deixei me endireitar, confiando que me seguraria, traindo meus próprios princípios sobre não precisar de ninguém. Aquele cheiro forte de sangue, eu percebia agora que não vinha apenas de mim. Otto estava banhado nele. Suas luvas, roupas e sapatos, tinham sido tingidas de escarlate.
— Vamos. Precisamos sair daqui. — Ele se aproximou mais, invadindo meu espaço de modo que dizia não ser um pedido, somente um aviso. Seus braços se estenderam para me carregar.
— Não! Espera! — Recuei instintivamente, um movimento tolo que fez a kunai se mover na carne da minha coxa. A dor quase me derrubou. Minhas pernas fracas ameaçaram ceder. — Temos… Temos que salvar os outros. Os outros prisioneiros.
Eu tentei tocar minha ferida na perna, como se isso fosse resolver. A compaixão na postura de Otto sumiu, substituída por uma frieza.
— Kakashi. — Ele chamou, seus braços permanecendo estendidos. — Só você me importa nesse momento. Os outros são irrelevantes.
Eu sabia, mesmo não gostando disso, que em meu estado atual, eu não seria páreo para ele. Otto poderia me carregar à força se assim desejasse, mas aguardava pela minha ordem — meu consentimento para estarmos em contato novamente.
Não poderia permitir. Deixá-los para trás não era uma opção. Nem que eu morresse por isso, jamais repetiria o erro do passado.
— Não vou permitir. — Apesar de fraco, minha autoridade se manteve. — Não vou permitir que nenhum dos meus companheiros fique para trás. Não sairei daqui sem eles.
Encostei na parede fria, deslizando devagar para sentar no chão. A dor na minha perna poderia ser ignorada se eu a tratasse de algum modo. Eu só precisava pensar. Apenas o corpo do ninja inimigo estava ali.
Otto observou, imóvel diante de mim. Eu mal podia adivinhar o que estava sentindo nesse momento. Desapontamento? Raiva?
— O que foi? — Questionei, pouco exasperado. — Pegue a bandana daquele cara. Vou precisar…
Ele se moveu, mas para se ajoelhar diante de mim. Suas mãos, ainda manchadas de sangue, seguraram minha coxa naquela mesma firmeza e delicadeza que usou para me segurar. Sem mais delongas, Otto puxou a manga de seu braço esquerdo, rasgando em um puxão.
Pela primeira vez agora, eu via um pedaço da sua pele bronzeada. Ele enrolou o tecido ao redor do cabo da kunai e apertou com uma força que me fez emitir um grunhido de dor. Apesar disso, ele não parou até impedir a saída de sangue.
— É uma ordem sua? — Otto questionou após esse tempo.
Eu o encarei, confuso, a dor turvando meu entendimento.
— Se quiser que eu mate seus inimigos, assim farei. — Seus polegares faziam uma leve carícia, com minha coxa entre suas mãos. — Se assim desejar, será o meu maior prazer, Kakashi.
Meus inimigos se tornariam os dele. Pensei nisso com um calafrio na espinha. Otto não somente mataria por mim, ele ansiava por isso. Sua devoção não tinha limites. As mortes seriam somente um ato de amor para ele. Era a coisa mais insana e cruel que eu já tinha ouvido, contudo, eu — cansado e espancado — comecei a considerar sua lealdade doentia.
E será que ele seria capaz? Fisicamente, depois do que eu vi, não tinha dúvidas. A pergunta não era se ele poderia, mas qual seria o preço disso.
Do outro lado daquela porta, Tenzo e os outros ainda estavam vivos. Eles precisavam de mim. Eu não podia falhar com eles. Não de novo. Nunca de novo.
Aceitar aquela oferta era, de novo, aceitar o seu amor, sua obsessão. E recusar seria matá-los.
— Sim. — Minha decisão foi feita. — É uma ordem. Agora me ajude a levantar.
Como fazer um pacto com demônio. Eu usava seu amor doentio como arma, alimentando-o para salvar minha equipe. E ao fazer isso, tornava minha vida mais intrincada.
Otto levantou de imediato, suas mãos agarrando meus antebraços e me erguendo sem dificuldades. Suspirei de cansaço quando minhas costas tocaram a parede outra vez.
Seu toque voltou ao meu rosto. Desta vez, não buscando por um ferimento. Como quem admirasse uma preciosidade — e eu imaginei que minha aparência não estivesse das melhores naquele estado. A palma ensanguentada deslizou pela minha pele, de modo que me fez estremecer.
— Vai ficar bem? — Percebia sua preocupação com meu estado.
Não tinha fôlego para palavras. Nem para mentiras. Somente assenti com a cabeça, movendo devagar.
Sua mão desceu, seu toque frio e ao mesmo tempo quente criando uma trilha pelo meu pescoço. Então, puxou o tecido da minha máscara para cima, reposicionando-a sobre meu nariz e a boca, restabelecendo o muro que eu mantinha para o mundo, mas que, agora entre nós, tinha sido quebrado.
— Fique atrás de mim o tempo todo. — Otto me deu as costas. Estava certo de que seria meu escudo.
Ele se moveu em direção à pesada porta de metal. Atravessou metade do seu corpo para fora dela, fazendo parecer que aquilo nem deveria estar ali. Um segundo depois, retornou para dentro e destrancou a porta.
— O caminho está livre. — Ele anunciou.
E eu, Kakashi Hatake, o homem que sempre liderava, o que sempre carregava o fardo sozinho, me vi pela primeira vez na vida não como um protetor, mas como um protegido.
Otto adentrou o corredor primeiro. Eu o segui, mancando com a perna ferida, agarrando o batente da porta para não cair. Fazia meu máximo para não pensar na dor.
O corredor se bifurcava em três direções, só que foi o caminho direto à nossa frente que tomou o fôlego que me restava.
O motivo de Otto estar tão encharcado de sangue. Corpos. Corpos destruídos. Ninjas da Nuvem, ou o que deveriam ser eles, jaziam em posições inumanas. Não era um ataque controlado, só movido pela fúria. Muita fúria. Uma coisa molhada e pesada caiu do teto aos meus pés — um pedaço de carne, quem sabe um torso, um órgão, impossível de identificar. Seguido dele, uma gota espessa de sangue pingou do teto.
Analisei aquilo até o fim do corredor. Um museu de horrores. Corpos desmembrados, braços arrancados, pernas torcidas, cabeças viradas do avesso com expressões de horror. Um pedaço de corpo estava cremado, o uniforme colado na carne crua, exalando um aroma podre. Mais adiante, uma cabeça esmagada na parede, como um inseto. Pedaços de diferentes pessoas espalhados como peças de quebra-cabeças, todos misturados sem sua parte original.
Isso deveria ser impossível. Ninguém, nem mesmo eu, faria algo tão frio e monstruoso.
Um assobio baixo ressoou, melodioso em contraste com o horror na minha frente. Otto. Parado na entrada do corredor à nossa direita, em seu perfeito estado, a não ser pelo vermelho nele, como um pintor sujo que acabara de criar uma arte — uma arte pintada para mim.
Meus pés se arrastaram em sua direção, minha mão não deixando de tocar a parede para sustentar o peso do corpo. Fitei suas costas quando ele se virou para liderar o trajeto, sua postura tranquila, porém atenta.
Essa é a sua paixão, Otto?
O silêncio deveria ser o mais essencial. Os passos de Otto eram inaudíveis, como os de um ninja assassino. E os meus eram arrastados, ressoando quando a sandália raspava no chão. Eu sabia que deveria estar descansando em algum lugar seguro. No entanto, me movia pelo desejo de ver meus companheiros. Além do mais, minha intuição dizia que Otto não permitiria que eu saísse de seu campo de visão.
Ele parou subitamente, eu congelei atrás dele. Estávamos em uma encruzilhada de corredores. Fechei os olhos por um instante, forçando a audição para ir além de onde estávamos. E assim, ouvi passos rápidos. Sete pares. O eco dos corredores me impedia de descobrir suas direções.
Otto recuou, suas costas indo contra o meu peito, suas mãos encontrando os meus quadris para me empurrar para trás, empurrando para a parede.
— Fica aqui. — Ordenou.
Depositei meu corpo pesado na parede, totalmente frustrado. Detestava essa incapacidade, ser rebaixado a um espectador inútil na minha própria missão de resgate.
Otto ficou aguardando no centro do cruzamento. Ele olhou para um corredor, depois para o outro. Foi aí que os passos se tornaram mais altos, vindos de ambos os lados. Estávamos cercados.
Do corredor direito, uma onda de calor surgiu de um Jutsu Bola de Fogo, indo em sua direção. Otto não se moveu. As chamas o atravessaram, sem afetar suas roupas, muito menos o seu cabelo. Ele permaneceu intacto, um demônio impassível no inferno.
Otto se moveu sem aguardar por uma reação. Disparou em direção ao corredor direito. Os três ninjas do corredor esquerdo — que não me notaram espremido contra a parede — correram atrás dele para sua chance de atacar.
Me inclinei para espiar a batalha. Otto saltou e girou, e desferiu um chute duplo que atingiu dois homens no rosto, gerando estalos de seus ossos quebrando. Um terceiro lançou outro jutsu de fogo, que novamente o atravessou como nada. Mantendo o ritmo acelerado, Otto lançou uma kunai no centro de sua testa e chutou o cabo, atravessando-a para sua nuca, jorrando sangue e pedaços de cérebro na parede atrás dele.
Golpes vindos de todos os lados agora. A agilidade de Otto era sobrenatural. Ele se esquivava de um ataque de espada e, no mesmo instante, contra-atacava com força suficiente para esmagar uma traqueia. Ele saltou, e seus pés se prenderam ao teto com chakra. De lá, de cabeça para baixo, cuspiu fogo que engoliu os homens abaixo em gritos agonizantes, trazendo de volta aquele cheiro de carne queimada.
Fiquei tão concentrado na sua coreografia violenta que esqueci do princípio mais básico do treinamento: um shinobi nunca vira as costas para o perigo.
Ouvi seu avanço vindo de trás, carregando um par de kunais reluzentes de um jutsu de relâmpago.
Em um segundo, ele vinha para cima de mim, suas lâminas prontas para cravar na minha carne.
No segundo seguinte, meu cérebro, lento pelas dores e a perda de sangue, analisou como deveria contra-atacar. Desviar, tentar segurá-lo, qualquer coisa, embora soubesse o quão fraco estava, sem forças para taijutsu, sem chakra para ninjutsu.
No terceiro segundo, Otto surgiu como um guardião. Sua mão, e somente ela, agarrou o rosto do ninja e amassou contra a parede como quem esmagasse um ovo. O inimigo sequer teve tempo de gritar. Uma cratera de sangue e fragmentos ósseos se formou na parede. O corpo desabou inerte. Os olhos, agora vazios e sem vida, permaneceram fixos em mim.
E tão rápido quanto havia surgido, Otto retornou para sua luta. Um dos inimigos, distraído pela aparição do fantasma, teve sua garganta rasgada por uma kunai.
Agora eu tinha entendido. A atenção de Otto nunca tinha desviado de mim. Enquanto lutava — quebrando um braço, decepando uma cabeça —, parte de si permanecia comigo. Tudo o que fazia era planejado não somente para matar, mas para manter a visão aberta de onde eu estava. Ele lutava em um eixo que sempre, sempre, me mantinha em sua visão. Se um corpo caía de uma forma que bloqueasse sua visão, ele o chutava para o lado como lixo. Se um inimigo ficava entre nós, ele o massacrava com ódio.
Otto não somente matava por mim, ele também dedicava e garantia que eu tivesse uma ótima vista desse espetáculo de horrores.
O último oponente no corredor ergueu sua espada, gritando ao atacar. Otto deixou a lâmina atravessar seu corpo, depois agarrou seus pulsos, dando uma cotovelada em sua boca e tomando sua lâmina. Com ela, fez dois cortes rápidos que arrancaram seus braços. Jatos de sangue esguicharam. O homem caiu de joelhos, o grito preso em sua garganta. Otto cravou a lâmina em seu peito até sair do outro lado. Uma finalização que ele fez com certo tédio.
Mais oito corpos na sua lista.
Ele se virou para mim, o calor dos teus olhos me analisando dos pés à cabeça, acompanhando meu trajeto até eu estar perto para voltarmos a andar juntos. Os passos de Otto eram impacientes para eliminar seu próximo alvo, mas contido, sempre recuando quando a distância entre nós atingia quatro passos.
— Eu poderia te carregar. — Ele ofereceu com uma clara segunda intenção.
— Nem morto. — Murmurei teimoso, arrastando minha perna ferida.
Novos inimigos vieram e Otto partiu para o ataque. Duvidei que tudo isso fosse seu estilo de luta. Muita agressividade insana, desprovida de remorso. Ele não buscava matar de uma só vez. Otto não os apagava. Ele os desmontava. Quebrava seus ossos com golpes a mão, como palitos. Garantia que seus últimos momentos fossem dolorosos.
Quando passei pelo corredor transformado em abatedouro, um dos caídos emitiu um som baixo. Nossos olhares se cruzaram. O homem estava vivo com sua mandíbula quebrada, a fraqueza o impedindo de gritar, somente suplicando com os olhos fixos em mim.
Eu quase senti pena dele. Quase.
E ali estava Otto, me aguardando, observando cada passo meu. Aí lembrei dos golpes que desferiram em mim, da kunai na minha coxa, os caçadores que mataram na minha frente enquanto debochavam de nós, da dor que latejava em meu estômago. Assim, toda a compaixão por eles sumiu. Sabiam bem o que estavam fazendo. E Otto, meu aliado psicopata, era seu karma.
Abrimos uma série de portas pesadas, que davam em salas de tortura e descanso. Os ninjas da Nuvem foram espertos em nos manter separados. A outra porta que abri me recebeu com aroma de sangue. Lá estava um dos meus caçadores, que eu cumprimentava todos os dias. Pendurado de cabeça para baixo por correntes, seu pescoço cortado escorria o restante de seu sangue, pingando na poça coagulada em baixo dele.
Por minha culpa, outra vida tinha sido tirada.
Otto tocou minhas costas com firmeza, o contato úmido das vidas que retirou. Ele não permitiu que a dor me tomasse, me puxando para longe daquele cenário. Ignorei a textura pegajosa da sua mão que ultrapassava o tecido da minha camisa.
— Nada disso é culpa sua. — Ele sussurrou somente para mim, suas palavras parcialmente abafadas pela máscara. — Não pense, nem por um segundo, que você errou. Entendeu?
Meu olhar encontrou o dele, durando mais que o necessário. Otto não via um líder ferido, nem um shinobi traumatizado, muito longe disso, enxergava o que os outros não conseguiam. Detestava como ele me conhecia, como conseguia me ler através da barreira que eu criei contra o mundo.
— Diz isso só para me deixar melhor. — Analisei, falando baixo.
— Não é o que fazemos pelas pessoas que amamos? — Ele rebateu.
Antes que eu pudesse formular uma boa resposta, ele se moveu em direção aos inimigos que surgiram. Mantive a mão apoiada na parede, assistindo a batalha. Quando um jutsu de água surgiu como um tsunami, vindo em minha direção para me arrastar e afogar, eu não me movi. Nem foi por coragem, somente a exaustão.
Uma parede de terra emergiu do chão entre eu e a água e absorveu o impacto. A água desviou ao meu redor, levando consigo não somente a sujeira, como também os corpos e o sangue fresco que Otto havia feito.
O próximo corredor era um corredor da morte, cheio de portas de metal que deveriam guardar mais horrores. Analisei elas, detectando duas trancadas, as outras aparentemente vazias. Uma pequena esperança se acendeu em mim. Sinalizei sem emitir som, para as portas. Otto compreendeu de imediato.
Ele adentrou nas paredes. De lá, ouvi os sons abafados, um grunhido que foi interrompido, a batida de um corpo contra algo sólido. Teve um breve silêncio, e a porta se abriu. A mesma ação foi feita na segunda porta.
Eu me arrastei para a primeira cela. Lá estava um dos meus, amarrado a uma cadeira de metal. Seu rosto tinha sido tingido de hematomas e sangue seco, tão inchado que eu mal o reconheci. Aproximei dele, meus dedos trêmulos tocando a pulsação em seu pescoço. Tinha pulsação. Fraca, mas tinha. Eu suspirei por alívio.
— O outro está bem. — Otto surgiu atrás de mim. Tive um tremor involuntário. Ele estava sempre lá. — Desmaiou pela dor, mas vai sobreviver.
— Faltam três.
Um morto. Dois vivos, porém incapacitados. E eu, os restos de um shinobi, praticamente inútil. A matemática disso era um pesadelo. Como eu poderia arrastar dois homens inconscientes para fora deste inferno, lutando contra meus próprios ferimentos e contra quaisquer soldados restantes?
Eu não podia me render agora. Mesmo que meu corpo estivesse fraco, meu cérebro lutava contra a névoa de dor, trabalhando em alguma ideia. Eu não podia lutar, mas podia pensar.
— Otto. — Virei para encarar a escuridão em que seus olhos deveriam estar. — Você ainda tem chakra?
Um aceno imediato dele, que ao contrário de mim, permanecia intacto.
— Consegue criar clones? — Eu continuaria fazendo uso de sua submissão insana. — Preciso que você os leve daqui. Coloque-os onde puder, contanto que seja seguro. Dessa forma, eu não saio do seu campo de visão e eles ficarão bem.
Eu sabia que deveria encaixar isso nos termos dele.
— Você está começando a me conhecer muito bem. — Ele comentou, e pude imaginar seu sorriso por baixo da máscara.
Otto ergueu a mão, formando o selo necessário para a aparição de dois Clones das Sombras. Eles se moveram sem uma segunda ordem, cada clone apanhando um dos meus companheiros e carregando-os dali na facilidade que me causava certa inveja.
— Precisamos continuar. — O Otto verdadeiro disse.
Sua mão tocou minhas costas, não para me sustentar desta vez, mas para me fazer andar para o próximo corredor, os três que faltavam.
Ele estava disposto a usar seu poder para meu plano, para salvar meus homens, contudo, sua prioridade absoluta permanecia sendo eu. E, por enquanto, essa obsessão era a única coisa que nos manteria vivos.
O próximo corredor surgiu, longo e tão silencioso que alertou meus instintos de imediato. Logo, um grito de desespero saiu de uma das salas. Otto se prontificou para seguir o som.
Agarrei seu braço mais rápido do que deveria, ignorando a dor do abdômen. A musculatura sob o tecido era tensa. Ele congelou, virando o rosto para mim, sua cabeça inclinando para o lado — uma pergunta silenciosa.
Eu não respondi. Ao invés disso, analisei o ambiente. Sem outros sons além daqueles na sala, nenhuma outra presença, muito menos uma segurança na porta. Uma armadilha tosca, eu percebi, mas eficaz para quem passasse sem perceber. Ergui o dedo indicador, primeiro apontando para o teto, depois para o espaço de chão na frente daquela porta. Pontos específicos onde a textura parecia diferente. Uma falsificação. Haviam ninjas ali, aguardando para uma emboscada.
Soltando seu braço, dei um passo para trás, deixando que fizesse o que deveria. Otto não precisou de mais instruções. Formou mais selos e soprou o jutsu Flor de Fênix, o vortex de chamas vivas que iluminou o corredor. O fogo se dividiu em dois, cada um atingindo os pontos que indiquei.
Mais gritos surgiram, desesperados e aterrorizantes. Figuras em chamas surgiram do chão e teto como baratas, suas formas se contorcendo e rolando pelo chão na tentativa de apagar as chamas que devoravam sua carne.
Novamente subiu aquele cheiro de carne queimada. Pensei comigo mesmo que ficaria um bom tempo sem comer churrasco.
Otto, em sua paz, seguiu adiante. Ele ignorou os homens por completo, passando entre eles sem ser encostado. Seu foco era a porta principal. Ele não a abriu, somente atravessou, sumindo por um instante.
Logo, o metal pesado se abriu e ele estava lá, agora com sua máscara decorada por respingos de sangue. Atrás dele, um de seus clones carregava outro dos meus colegas apagado em seu ombro.
— Apagou ele? — Questionei, me aproximando com cautela para não pisar nos carbonizados.
— Para não me reconhecer. — Otto explicou com tranquilidade, não como se tivesse acabado de nocautear um aliado.
Faltavam dois, e ao meu ver, só restava um corredor. Um beco sem saída com uma única porta de ferro. Caminhamos em direção a ela, até uma voz surgir de lá:
— Parem onde estão! Ou mataremos seus caçadores!
A ameaça, tão clichê, me estressou a ponto de eu esquecer a dor.
— Está blefando! — Gritei de volta, forçando minha voz a soar mais firme. A dor no meu estômago aumentava com as batidas aceleradas do meu coração.
— Não pense que sou um covarde como os outros que você encontrou pelo caminho! — O homem retrucou, notavelmente em pânico.
Eles não deveriam ter muitos homens. Otto havia dizimado grande parte deles sozinho, e agora aguardava com expectativa a minha próxima ordem. Admirava sua paciência, pois a minha estava se esgotando.
Toquei meu estômago, sentindo a contusão profunda e a náusea que a acompanhava. Pensar demais piorava as dores de cabeça. Dois homens. Tenzo, com seu futuro pela frente. Takeshi, recém noivado. Eu não podia falhar.
— Entregue-os e não mataremos você! — Negociei, forçando minha mente a trabalhar apesar da agonia. A lógica era minha única arma. — Você está sozinho, não está? No mínimo, deve ter mais uma pessoa aí dentro para conseguir manter dois reféns!
Ele não respondeu por um bom tempo. Um tempo revelador.
— Vão embora! — Ele berrou. — Ou mataremos eles agora!
A possibilidade gelou meu peito. E se a negociação fosse falsa? Ele não tinha nada. Meus homens poderiam estar mortos. Tenzo… Takeshi…
Apertei as mãos em punhos para conter minha raiva. Odiava estar tão impotente. Queria eu mesmo rasgar sua garganta.
— Estamos indo embora! — Anunciei. Era uma jogada arriscada, um blefe final. — Só não os mate!
Recuei um passo, e Otto, uma sombra fiel, se moveu comigo, seus olhos nunca me deixando. Saímos do alcance visual da porta, nos encostando na parede fria do corredor. Eu notava como começava a suar frio pelas dores. Não importava.
Olhei para Otto.
— Vai.
E assim, ele desapareceu na parede. Eu dei ao inimigo uma ideia de segurança temporária. Parte de mim desejou estar lá para poder ver a cara deles quando vissem um homem surgir do nada.
Assim que comecei a ouvir os sons, desencontro da parede para caminhar. Eu não sei se aguentaria ficar de pé por muito mais tempo. Me arrastei para a porta, a coxa latejando mais forte. Um último grito foi interrompido lá dentro.
Nem precisei estender a porta para abrir. Otto quem fez isso de dentro, me recebendo em outra de suas oferendas. Sua imagem se mantinha estável, somente com mais sangue pingando de suas roupas.
Ali dentro, dois ninjas da Nuvem foram finalizados com sua criatividade. O primeiro, tinha o rosto aberto por um corte que ia da testa ao queixo, sua perna cortada pela metade, sangrando do outro lado da sala. O segundo, jogado no canto, estava com o próprio braço arrancado, enfiado garganta abaixo.
Não me prendi neles. Meu foco era nos outros dois. Meu estômago, já dolorido, sofreu um nó ao ver Takeshi morto na cadeira, pálido como a neve. Sua vida foi retirada por inúmeros cortes no corpo que permaneciam pingando na poça vermelha. Verifiquei sua pulsação. Nada. Eu tinha perdido mais um.
Meus olhos pousaram em Tenzo. A lateral de seu rosto estava inchada e roxa,um hematoma de um golpe covarde num menino de quatorze anos. Mas quando meus dedos pressionaram sua artéria carótida, senti seus batimentos fracos.
Era um alívio e uma outra perda.
— Pegue-o! — Ordenei de imediato. — Rápido!
Otto obedeceu no mesmo segundo. Ele jogou o corpo inconsciente de Tenzo sobre o ombro como um saco de farinha. Antes que eu pudesse sequer tentar outro passo agonizante, seu outro braço — o que não segurava Tenzo — envolveu minha cintura. A pressão contra meu estômago dolorido foi uma explosão de dor, só que não havia tempo para protestos. Ele me ergueu como se eu não pesasse mais que uma pena, meu corpo colapsando contra o dele.
Otto correu conosco, sem sinais de cansaço, e saltou para fora dali. Mal pude acompanhar de vista. O cheiro de morte e metais desapareceu. Atravessamos paredes como quem ignorasse um genjutsu, passando direto por elas. E para um alívio dos céus, o ar puro nos recebeu.
O calor da batalha foi se dissipando no trajeto, dando espaço para um corpo frio, porém vivo.
Otto nos levou para um espaço escondido entre arbustos densos, onde os outros caçadores sobreviventes permaneciam inconscientes. Ele largou Tenzo no chão, da mesma forma que soltaria uma bolsa pesada, mas ao me soltar, seus braços fizeram com a cautela de quem temesse um desmoronamento. Me apoiei contra a árvore.
— Dois mortos, quatro vivos por pouco. — Eu os observei. O custo da guerra.
Eles precisavam de ajuda profissional e urgente. Assim como eu.
— Você precisa sair daqui. — Falei a Otto, ofegante pela dor. — Vou pedir uma equipe de resgate. Só não sei como vou justificar dezenas de ninjas da Nuvem mortos.
— Deixe isso comigo. — Ele ofertou casualmente. — Se o local explodir, já vai te poupar de muita explicação.
Eu nem saberia como agradecer a ele.
— Eu estou te devendo agora. — E muito. Pensei, sem coragem de dizer em voz alta.
Otto, que se virava para ir embora, parou.
— Eu voltaria para matar todos eles assim que removesse você de lá. — A confissão veio, não para impressionar, somente sendo uma verdade. — Você ter ordenado só foi um bônus. Um bom motivo para fazer isso em seu nome.
— Acho que eu nunca vou te entender. — Admiti.
Ele me encarou, e eu sustentei seu olhar. Dezenas de corpos. Uma pilha de carnificina. Tudo sendo uma oferenda em meu altar.
Ele se aproximou. Eu não recuei.
Sua mão enluvada pousou sobre meus olhos. A escuridão chegou para mim, mas confiei e aceitei. E através do tecido da minha máscara, senti o formato dos seus lábios sobre os meus. Não foi suave como a primeira vez. Foi mais forte, como se pudesse ultrapassar o tecido — porque ele poderia, se quisesse. E eu me agarrei a isso, ainda que discretamente, minha mão puxando sua camisa para mais perto, aprofundando o contato insano.
Ele se afastou um pouco para voltar a falar, seu sussurro quente colidindo com o tecido entre nós.
— Por outro lado, os salvamentos de seus colegas… — Eu conseguia imaginar seu sorriso perverso. — isso eu posso cobrar mais tarde, não posso?
Sendo assim, Otto se foi sem esperar que eu lhe desse um fora, ou um xingamento por seu atrevimento.
Mesmo assim, pensando comigo, notei que sua presença — além de ter sido uma grande ajuda profissional — também serviu como um alívio mental.
Chapter 9: Obito – Motivo de Existência
Chapter Text
Quanto tempo uma visita hospitalar poderia durar?
Passei a tarde inteira observando do lado de fora da janela do meu Kakashi. Seus colegas entraram com flores e sorrisos irritantes, e falavam sem parar, céus, como falavam. E aquela Mula Verde ficou fazendo flexões de cabeça para baixo sem um motivo aparente.
Não me leve a mal, Kakashi, meu amor, mas você realmente precisa de companhias melhores.
Minha tortura visual finalmente chegou ao fim quando a enfermeira apareceu, carregando uma bandeja de comida. A despedida deles foi breve. Eu aguardei ansioso, enquanto a mulher checava seus sinais vitais com as mãos que desejei arrancar, e finalmente saiu, fechando a porta atrás de si.
O caminho estava livre. Eu saltei para a janela aberta. Logo de cara, senti o cheiro de medicamentos, suor daquele palhaço verde, e acima disso, o cheiro de Kakashi.
— Até que enfim. — Pousei no chão sem emitir som, vindo para sua cama. — Pensei que fossem dormir aqui.
— Estavam preocupados. — Ele justificou, sem aparentar surpresa pela minha visita.
— Se ficassem mais, eu teria que matá-los também. — Eu disse, me sentando na beira da cama, perto de seus pés cobertos.
Ele ficou me encarando sem dizer nada e eu percebi que deveria corrigir.
— É piada. — Acrescentei rapidamente.
— Então você tem um péssimo senso de humor. — Ele retrucou, separando os hashis de madeira de modo calmo, que denunciava seu cansaço.
Kakashi mexeu a sopa sem vida na tigela, sobre a mesa da maca. Eu não podia vomitar, infelizmente, mas aquela coisa que chamavam de comida me fazia querer. O caldo tinha a cor de água suja, e os pedaços pálidos que boiavam sequer pareciam carne comestível.
— Certeza de que não prefere uma comida que não pareça ter sido tirada de um esgoto? — Observei, esperando uma ordem que me deixasse trazer um alimento digno. — Garanto que posso providenciar um alimento melhor, tipo a sopa de missô que você gosta.
Kakashi ficou pensativo, considerando a ideia. Me olhou de volta, depois analisou a água suja e o pedaço borrachudo de carne que segurava entre os hashis. A sopa de missô era sua preferida — eu sabia disso. Um alimento reconfortante após tanto estresse. Era perfeito para ele.
— Acho que já me aproveitei demais de você. — Ele respondeu baixo.
Pensava que isso era se aproveitar? Um pedido de sopa?
— Pensei que já tivéssemos resolvido essa questão. — Fiquei ligeiramente ofendido. Me estiquei um pouco para frente, forçando-o a me encarar de novo. — Você pode se aproveitar de mim o quanto quiser, Kakashi. Tudo em mim te pertence. É seu. Eu sou seu.
Não estava zangado com ele, somente intrigado. Esmaguei cabeças por esse homem, arranquei membros, fiz ninjas sofrerem em seus últimos segundos de vida, tudo porque uma ordem saiu dele. Fiz tudo aquilo com muito gosto. Agora, ele hesitava em dar outra ordem porque pensava estar “se aproveitando demais”?
— Tudo bem. — Kakashi suspirou, dando por vencido. Abandonou o par de hashis sobre a bandeja, ao lado da tigela. — Quero uma sopa de missô. E suco de melancia. Sem açúcar.
Eu sorri triunfante, saltando para fora da cama. Fora do hospital, assumi uma aparência comum, que não despertasse atenção de outros ninjas. Meu destino foi o seu restaurante que eu sabia ser o seu preferido — pois já tinha o visto saindo de lá inúmeras vezes.
Fiz minha missão o mais rápido possível, retornando com uma sacola de comida digna em minha mão, trazendo o aroma da comida saborosa. Captei um momento raro em que Kakashi demonstrou curiosidade quando sentiu o cheiro.
Kakashi, é claro, não me permitiu servi-lo. Alguns resquícios de seu orgulho teimoso ainda precisavam ser erradicados. No entanto, ele permitiu que eu me livrasse da sopa de esgoto em segredo, para não ser descoberto pela enfermeira.
Retornei para meu cantinho na cama, de pernas cruzadas e dobradas. Vi sua hesitação quando ergueu a mão em direção à máscara. Ainda sim, ele cedeu e a abaixou, pois sabia que não valia mais a pena esconder isso de mim.
Céus, como alguém podia ser tão perfeito? Me sentia abençoado por ver seu rosto divino de tão perto, um dos poucos a ter aquela visão. Cada curva era uma obra-prima. A linha de seu nariz, seus lábios — tão bem desenhados, convidativos para um toque, um beijo, até mais do que isso. E a pinta próxima de sua boca, um toque sedutor que elevava sua beleza a um nível que deveria ser proibido. Kakashi era a pura perfeição, e todo meu para admirar.
Assisti, hipnotizado, enquanto ele comia. Um simples gesto dele era gracioso. Kakashi se concentrava na alimentação, e eu me concentrava nele. A comida deveria estar ótima, porque ele saboreava sem perder os bons costumes. Isso me aqueceu por dentro. O olho de seu Sharingan permanecia fechado, escondido sob as mechas do seu cabelo prateado.
Quando encerrou a última colher de sopa, ele levou a tigela aos lábios para beber o restante, e depois acabou com o suco de melancia num gole. Um suspiro de satisfação escapou dele, soando mais erótico do que qualquer gemido. Ele se recostou na cama inclinada.
Eu tratei de recolher a tigela e os utensílios de imediato, jogando tudo de volta à sacola.
— Como se sente agora? — Deixei a sacola cair no chão, ao lado da cama.
Ele puxou o tecido de volta ao lugar, me privando de continuar o admirando.
— Satisfeito.
Apoiei os braços sobre minhas pernas ainda dobradas, meu corpo voltado inteiramente para ele. A luz da lua entrava pela janela, destacando sua beleza celestial. Era como se ele fosse parte dela. Sua pele pálida tinha um tom semelhante à uma pérola, seus cabelos prateados como raios lunares, e seus olhos escuros, dois breus hipnotizantes, remetiam a uma noite sem nuvens. Ele era como um céu estrelado, normalmente distante, impedindo que eu pudesse tocá-lo.
— Veio me cobrar o favor? — A sua pergunta me puxou do devaneio.
Suas mãos repousavam sobre o colo, o cobertor criando uma barreira sobre a metade inferior do seu corpo — uma área pela qual eu ansiava em segredo.
— Não. — Respondi simples. Apoiei o cotovelo na perna e minha cabeça no punho fechado, mantendo uma pose tranquila, porém focada. — Hoje, eu só quis garantir que você estivesse bem e satisfeito.
Ele me analisou, desconfiado, como sempre.
— E o que vai cobrar de mim?
Um sorriso lento se abriu em meu rosto.
— É uma surpresa. — Não consegui conter uma leve risada. — Não gosta de surpresas?
— Não gosto de não saber das coisas. — Ele tratou de se explicar, no entanto, percebia a leve frustração.
— Lamento, meu amado Kakashi — As palavras de afeto saíram naturalmente. — mas não irei revelar. Não ainda.
Ele fez aquilo de novo: semicerrou os olhos, me avaliando, analisando, mas com um sutil brilho de desafio.
— Nem se eu mandar você contar? — Aquilo era uma armadilha dele, um tom de autoridade que agora ele sabia que tinha sobre mim.
Um frio emergiu na minha barriga, a sensação que somente ele poderia provocar. O impacto da submissão, o prazer de saber que seu desejo seria sempre a prioridade.
— Bem… — Arrastei a palavra, saboreando a rendição, me divertia imensamente por saber que estava se acostumando. —…nesse caso, eu não teria escolha, teria? Um comando é um comando.
E eu ansiava por isso. Pelo instante em que ele aceitaria totalmente aquilo que eu lhe oferecia, e usaria, não somente para assassinatos, mas para mandar em tudo que havia em mim. Até mesmo meus segredos.
Kakashi se moveu, dobrando as pernas embaixo do cobertor, pendendo em minha direção. A distância entre nós ficou menor, embora ainda tivesse um espaço para ser quebrado.
— E se eu mandar que remova sua máscara? — Ele ergueu o dedo indicador, bem próximo da máscara. O ato não representava uma ameaça, só testava os limites.
Eu quis obedecer, me despir diante dele em todos os sentidos possíveis, um imenso desejo que quase me fez ceder.
— Hm… — Não. Não agora e nem assim. A realidade horripilante arruinaria tudo. — Acho… que tenho minhas exceções.
Ele não insistiu, recuando a mão de volta para seu colo. Senti uma pontada — uma facada, para ser sincero — de frustração. Eu ansiava por seu toque, mesmo que fosse para arrancar minha máscara à força. Felizmente, seu interesse não se dissipou.
— A máscara eu entendo. Mas por que as roupas?
Pisquei, confuso por um segundo, até lembrar que ele não podia ver minha expressão.
— Você possui traços específicos que precisa esconder? — Sua análise era perigosa, no entanto, eu gostava de ter sua atenção em mim. — Não vejo uma centelha da sua pele, exceto quando arrancou a manga da camisa. O que mais está escondendo, Otto?
O nome falso soou como uma acusação. De repente, senti que meu lado direito começou a formigar como um alarme — aquilo que eu evitava por não ser digno dele.
— Defeitos. — Confessei, sincero como só podia ser com ele. — Cicatrizes do passado.
Ele não protestou, muito menos se deixou abalar.
— Então, é uma área que não posso acessar. — Concluiu, não por falta de interesse, mas pela aceitação de um fato, o que foi pior.
— Eu não diria isso. — Tratei de corrigir rapidamente, o desejo de obedecer sendo maior que o pavor. Eu precisava ser verdadeiro com ele, ainda que fosse por uma coisa mínima. — Só… temo pelo que possa pensar ao ver.
— Eu não sou superficial. — Ele declarou, soando como quem havia visto demais para se importar com aparências.
— Claro que não. — Um sorriso triste e adorador esticou meus lábios. — Você é o retrato da perfeição, Kakashi. É o paraíso que eu tanto almejo, por isso que temo não ser digno dele.
Ele se mexeu na cama, aparentando desconforto pelo local em que estava. Seu olhar se desviou de mim por um momento e eu percebi que havia o deixado sem jeito.
— Você me vê como uma coisa que não sou. — Ele começou, repetindo algumas das minhas palavras. — Uma perfeição, um divino. Não pensa que pode se decepcionar? Eu não sou um deus, Otto. Sou somente um homem cansado. O que vai acontecer quando eu parar de aceitar suas oferendas de sangue? Seu entretenimento vai acabar?
As questões foram um golpe baixo.
— Basta que me diga o que você prefere. Me dê novas ordens. Fale o que precisa de mim que eu serei, Kakashi. — Supliquei, apoiando as mãos no colchão para me estender em sua direção. — Se não desejar a violência, eu não a farei. Me dê outra coisa para ser para você. Ordene que eu faço.
Kakashi me encarava com cansaço — físico ou mental — aparentando ver além da minha máscara.
— Está bem. — Ele afirmou calmamente. — Me fale sobre o que você esconde. Não quero ver, não ainda. Só quero saber. Conte-me uma verdade.
Não era o que eu esperava. Era pior e mais íntimo. No entanto, era uma ordem e eu deveria ser incapaz de desobedecer.
Respirei fundo, organizando a história, tecendo os fios da verdade e da mentira para esse momento.
— Quando eu era mais novo, fui tirado da minha família contra a minha vontade. — Eu comecei, fechando o punho direito. — E pego por um homem que não me via como um ser humano, somente como uma arma. Ele fez o impossível para isso acontecer.
Eu precisava moldar para esconder certas palavras embaixo do tapete, misturar a história de Obito com a de Otto. A culpa por mentir era menor se comparada ao pavor de revelar minha identidade.
— Orochimaru… — Prossegui, e eu vi o reconhecimento instantâneo nos olhos de Kakashi. — Ele fez inúmeros testes em mim. Estes que me permitem fazer o que você já viu. Teleportar, regenerar… coisas que um humano não deveria fazer. Ele me tornou mais forte mas também me tornou menos humano.
Kakashi não se moveu.
— Por quanto tempo? — Ele se mantinha em sua calmaria, bastante concentrado. — Quanto tempo você ficou com ele?
— Anos. — Confessei. — O bastante para que eu esquecesse como é viver de verdade, para que a única coisa que me lembre de que ainda estou aqui seja você.
Ele não expressou pena. Não era do feitio dele. Em vez disso, sua próxima pergunta veio como um profissional em problemas mentais:
— E as cicatrizes? São físicas ou… mentais?
Ele tentava decifrar os danos, como um bom caçador. Alguém que entendia bem das marcas internas e externas que esse mundo poderia causar.
A mão direita tremeu levemente, recordando da dor naquele dia, do desespero dos meus colegas de time.
— Ambas.
A mentira se fundia à verdade de modo tão ágil que eu mesmo poderia acreditar nela.
Kakashi pareceu processar isso, a calmaria entre nós me fazia esquecer do mundo lá fora. Ele me fazia sentir que existia.
— Foi ele quem te ensinou a… — Ele pensou na pergunta. — admirar as pessoas dessa maneira?
Traduzindo: ele te ensinou a ser obsessivo?
Eu tornei a sorrir.
— Não. Isso foi você quem despertou em mim. Me mostrou que não preciso só sentir dor e raiva.
Kakashi não era um tolo. Ele sabia que tinham motivos mais profundos para minha devoção do que eu havia contado.
— E sou o primeiro a despertar isso em você? — Questionou com mais curiosidade.
A verdade queria saltar para fora, e eu mordi a língua para conter. Precisava manter a cautela.
— Tecnicamente, sim. — Eu me mantive na linha entre a verdade e a mentira. — Já senti algo parecido, com outra pessoa, há muito tempo atrás. Entretanto, foi você quem me trouxe de volta à vida. Quem fez com que eu quisesse servir de corpo e alma.
A emoção tomou conta de mim, e antes que pudesse me conter, uma pergunta tola — e um tanto ousada — escapou:
— Por que a pergunta? Ficou com ciúmes?
Deuses, por favor, diga que sim. Eu daria tudo para ver um sinal de possessividade em seus olhos.
Em vez disso, Kakashi mudou completamente sua expressão para um desprezo — exagerado o suficiente para eu saber que forçou isso.
— Chega. Vou dormir. — Declarou, e começou a se ajeitar na cama, deitando no colchão. — Boa noite.
Eu precisei contrair os lábios para não soltar uma risada. Um barulho alto poderia atrair a atenção dos profissionais noturnos, e a última coisa que eu queria era ser descoberto ali — pior que isso, não queria que nosso momento acabasse.
— Não, por favor. — Implorei, a voz trêmula de tanto segurar o riso. Segurei a ponta do cobertor, impedindo que ele puxasse completamente. — Eu estava brincando. Não me deixe assim.
— E eu estou com sono. — Ele retrucou, sem abrir os olhos para mim. — Devolva minha coberta.
Imediatamente, obedeci. Ele trouxe o cobertor com um puxão bruto e se virou de lado, enterrando o rosto no travesseiro.
— Só quero dormir por causa dos remédios. — Murmurou, como se fosse minha culpa.
Permaneci ali, observando. O desejo de rir se esvaindo lentamente. Tinha tempos que eu não me sentia tão leve.
— Mas não está com raiva de mim, está? — Questionei baixo, precisando da confirmação.
Ele não respondeu de imediato. Apenas soltou um suspiro pesado.
— Otto — Disse ele, sem se virar. — Se eu estivesse com raiva, você já estaria do outro lado da janela.
Kakashi não estava irritado, não tanto. Eu sabia disso. Era um detalhe importante para mim, que sempre analisava suas emoções.
Observei suas costas, sem me mover para não atrapalhar. Sua respiração foi se tornando mais lenta, contudo, eu sabia que ele ainda não tinha adormecido. Kakashi não dormia tão rápido.
— Os remédios são fortes? — Sussurrei.
Ele emitiu um som baixo, entre um grunhido e uma afirmação — eu supus.
— Quer que eu peça para a enfermeira trazer mais água? — Insisti, incapaz de me conter. — Nesse caso, eu posso ir buscar.
Dessa vez, ele se virou. Seu único olho me encarou na iluminação fraca, e mesmo com a máscara, eu pude reparar no seu cansaço.
— O que você quer, Otto? — Não parecia irritado. Estava mais para alguém que aceitara, temporariamente, a incapacidade de se livrar de mim.
A pergunta me pegou de surpresa. O que eu queria? Eu queria tudo. Queria arrancar aquela máscara dele com meus dentes e traçar cada linha de seu rosto com meus lábios. Queria nos tirar daqui e levá-lo para longe, distante de qualquer impedimento. Queria ouvi-lo ordenar que eu destruísse alguma coisa, só para sentir aquele poder novamente, sabendo que era por ele.
Mas eu não podia dizer isso.
— Nada. — Menti. — Só queria ter certeza de que você está confortável.
— Você é a coisa menos confortável na minha vida no momento. — Ele resmungou, virando de costas para mim novamente. — Não vai embora?
Foi uma pergunta sem intenção de ordenar. Eu neguei com a cabeça, mantendo o sorriso idiota que ele causou em mim.
— Vou ficar. Só por mais um tempinho.
Kakashi não reclamou sobre isso, ele estava me tolerando mais. E para mim, isso já era um grande avanço. Somente se ajustou, não só como se estivesse arrumando o cobertor, como também estivesse aceitando minha presença.
Era o motivo da minha existência. Deveria ficar e me certificar de que nenhum mal o tocaria. Nenhum inimigo, e nenhum pesadelo sequer — ou um Asno Verde de Konoha. Assim, durante a vigília, aproveitaria esse momento de silêncio compartilhado.
SoftieNoir on Chapter 1 Fri 03 Oct 2025 05:32AM UTC
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LilithDLune on Chapter 1 Fri 03 Oct 2025 03:46PM UTC
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Aamndaaa (Guest) on Chapter 3 Fri 10 Oct 2025 02:59AM UTC
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Aamndaaa (Guest) on Chapter 4 Fri 10 Oct 2025 03:07AM UTC
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Eve15 on Chapter 5 Sun 05 Oct 2025 03:33AM UTC
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SoftieNoir on Chapter 6 Fri 03 Oct 2025 04:27PM UTC
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