Actions

Work Header

Amargo Sentimento

Chapter 1: Começos ásperos

Chapter Text

Os feixes de luz do sol começaram a raiar pela janela, iluminando o quarto e despertando Agnis, que lutava para se manter dormindo. Relutantemente, ele abriu os seus olhos, observando o quarto iluminado. O quarto era sujo, com infiltração nas paredes, além da tinta na parede descascando. O cheiro de mofo vindo do teto de madeira era fraco o suficiente para não causar náusea, mas forte o suficiente para causar desconforto. Agnis suspirou, incomodado; sabia que era questão de tempo até seu pai, Cécius, arranjar um lar de verdade para eles morarem. Mas até lá, deveria se contentar com hotéis de esquina com higiene questionável, o que se mostrava ser uma tarefa difícil. Se dirigiu até o banheiro, se fixou contra a pia e se encarou no espelho por um bom tempo, respirando profundamente, preparando-se para o que o dia vinha a oferecer.

Agnis era um humano de pele negra, cabelos longos e olhos castanhos. Carregava em seu rosto, um cavanhaque e um olhar cansado. Faziam apenas dois dias que Agnis se mudou para Pontiféia, a capital de Fígoa. Se mudou após uma proposta irresistível que seu pai recebera para trabalhar como secretário político. Agnis não sabia ao certo o que seu pai fazia, e toda vez que questionara, recebia a mesma resposta: “é um cargo importante!”, o que o afastava um pouco de seu pai, algo que já não era difícil, levando em consideração as opiniões do pai sobre a escola cujo Agnis havia sido transferido. Desceu as escadas rapidamente, encontrando seu pai no refeitório, ao lado da recepção. Cécius era idêntico à Agnis, com a única diferença sendo sua barba ser consideravelmente maior. Apesar da má estrutura dos quartos, o refeitório era relativamente agradável, com paredes de tijolos laranjas, e janelas altas que iluminavam o salão num tom atrativo.

— Agnis —, cumprimentou seu pai, enquanto preparava um sanduíche de torradas com ovo. — Bom dia, filho. Dá para ver pela sua cara o quão animado você está para o dia de hoje.

— É… —, confirmou Agnis, juntando-se ao longo balcão, quase vazio. — Não dá para ficar muito animado, né…

— Eu entendo, filho — Cécius estendia o sanduíche para Agnis, que pegou-o da mão do pai. — Não dá para se animar muito levando os acontecimentos recentes… honestamente, decepcionante as decisões que uma escola tão importante quanto a… err… como se chama?

— Faculdade de Tasha para Todas as Profissões. — Agnis suspirou, mal conseguindo comer o sanduíche. Já sabia para onde aquela conversa se dirigia. — Ou chama só de Faculdade de Tasha.
— Faculdade de Tasha… — Cécius suspirou profundamente. — Sabe o que eu acho desse tipo de agregação. Meu filho, nós dois entendemos que essa faculdade apresenta uma grande aprovação no mercado de trabalho, mas por favor… não se misture com tais… “tipos”.

Agnis virou a cabeça, observando os outros indivíduos do salão. Já teve aquela conversa com seu pai inúmeras vezes, envolvendo tal assunto tão recente e indiscutivelmente polêmico. De fato, a Faculdade de Tasha para Todas as Profissões foi a primeira faculdade do estado a agregar todos os tipos de raça.

De qualquer forma, todos os pensamentos envolvendo política, trabalho, ou qualquer tipo de discussão social simplesmente sumiram da cabeça de Agnis. Faltavam cerca de uma hora para seu primeiro dia de aula e, por algum motivo, ele sentia algo estranho na boca do estômago. Talvez o sanduíche de torrada com ovos não caíra tão bem.

Dandelion acordou repentinamente, com o som de cortinas sendo puxadas e a luz do sol batendo rapidamente em seu rosto. Seu despertar não era calmo, mas abrupto e repentino, como sempre fora desde que se conhecia por meio-elfo. Mas naquele dia em específico, sua cama parecia especialmente mais confortável. Se virou de costas, resmungando, tentando evitar a luz direta em sua face.

— Dandelion! —, uma voz rouca, de idade avançada, tirou-o de vez de seu sono. A responsável por todo aquele tumulto matinal. Era Kalinka, sua mãe de criação. — Você vai chegar atrasado no primeiro dia de volta às aulas! Vamos, levante!

— Não quero ir hoje… —, o meio-elfo cobria seu rosto com o travesseiro, tentando voltar ao estado de sono que fora arrancado. — Me deixa faltar hoje… é primeiro dia… acho que estou doente.

Havia um motivo para Dandelion querer faltar: não tinha dormido direito naquela noite . Virara a madrugada lendo os romances que recebeu de aniversário de Gargantuvo na semana anterior. E não havia nada no mundo que o deixasse mais irritado do que não ter uma boa noite de sono.

— Não, não! — Kalinka puxou o travesseiro de Dandelion, forçando-o a encarar a luz. — Anda! Tome café e se arrume! Você prometeu a Gargantuvo ajudá-lo no clubinho de vocês.
Kalinka se retirou do quarto, fechando a porta atrás dela. Dandelion continuou deitado, encarando o teto. O quarto refletia muito sua personalidade: bagunçado, com roupas espalhadas pelos cantos e a cortina que ficava praticamente fechada o dia todo. A cama é espaçosa e igualmente desajeitada, raramente sendo arrumada pela própria Kalinka.

Dandelion finalmente encontrou coragem para se levantar, dirigindo-se ao banheiro do quarto. Encarava o reflexo atentamente: sua pele escura, seus olhos com heterocromia (um amarelo e o outro castanho), suas orelhas pontiagudas e seu cabelo dread bagunçado. Amarrou o cabelo num coque antes de se preparar para o café. Se sentia inseguro quando pensava sobre a faculdade, apesar de estar familiarizado com o lugar. Afinal, era o primeiro ano em que a agregação de todas as raças entraria em vigor. Lembrava de como era difícil manter contato com Gargantuvo, seu amigo de infância, que precisava viajar para outra cidade para poder estudar. Lembrou do início do ano, e das dificuldades de manter qualquer tipo de amizade com outras raças. Talvez esse semestre fosse diferente.

Atravessou o corredor, chegando na cozinha. Kalinka já havia separado uma xícara de café, que esfriara dada a demora. Não se deu ao luxo de nem se sentar à mesa, pois isso iria atrasá-lo mais ainda. Bebeu rapidamente o café frio, comeu metade de uma torrada, e se preparou para sair.

— Já estou indo, Kalinka! —, ele anunciou, colocando a mala sob o ombro e abrindo a porta. — Devo voltar no mesmo horário de sempre!

— Se cuide, meu filho! — Respondeu a senhora, do outro lado da casa. — Quero que me conte depois como foi!

E assim, Dandelion partiu. Ainda se sentia sonolento, irritado, inseguro. Mas no fundo, uma pitada de esperança. Talvez o primeiro dia não fosse tão ruim assim. O que de ruim poderia acontecer?

Agnis estava na porta da faculdade, com a mochila sob suas costas. Ele observava a movimentação do pátio principal: era um pátio espaçoso, com céu aberto e piso de madeira. Havia bancos e mesas espalhados por toda a área, além de um corredor que levava para um segundo pátio, rodeado por cabines de comida; um refeitório. O pátio principal era cercado por três grandes blocos — edifícios de cinco andares cada, formado por extensos corredores com inúmeras salas de aula em cada andar. Cada bloco era dividido por uma letra: bloco A, B, e C, respectivamente, da esquerda para a direita. Além disso, atrás do câmpus, havia um extenso bosque, onde alunos descansavam e praticavam atividades físicas. A faculdade era localizada numa região um pouco afastada da cidade, quase adentrando a floresta.

— Não gosto dessa localização —, argumentou Cécius, segurando firmemente o ombro do filho. — Acho perigoso demais construírem um edifício tão grande de maneira tão afastada de…

— Pai —, interrompeu Agnis, impaciente. — Pode ir agora. Eu me viro daqui.

— … certo então. — Cécius soltou o ombro do filho, encarando-o com uma expressão de poucos amigos. — Tente se enturmar somente com sua laia, Agnis. Não queremos problemas com outros… “tipos”. — Ele se virou, então partiu.

Agnis estava sozinho, em uma faculdade nova, agora com quase o quíntuplo de estudantes de sua última faculdade. Se sentia ansioso; estava realmente pronto para explorar tudo aquilo? Como se comportar perante raças tão… “inferiores”? Será que encontraria alguém da sua mesma laia por ali? De qualquer forma, era algo que ele deveria descobrir por conta própria.

“Certo… 302-B”, pensou para si. “Minha sala… já deve estar cheia. Merda, eu não queria ser o último a chegar”. Finalmente colocou-se a andar, atravessando o grande pátio, dirigindo-se ao bloco central. Enquanto caminhava, via e ouvia coisas tão vastas: Tieflings conversavam animadamente sobre poções, Dracônicos e meio-orcs discutiam se cem minotauros venceriam um tarrasco. Viu até um casal de halflings se paquerando em uma das mesas. Para Agnis, tudo aquilo parecia tão… errado. Isso o assustava. Se encolheu ainda mais, enquanto se dirigia até a escadaria.

Dandelion estava do lado de fora da sala, no terceiro andar do bloco B. Observava a movimentação do pátio, enquanto se concentrava em se manter acordado. Por que o professor demorava tanto para chegar? Isso o frustrava ainda mais. Suspirou profundamente. Pensava sobre os novos professores escalados para dar aula. Será que eles seriam melhores que os antigos?
Até que seus pensamentos foram interrompidos por uma voz familiar.

— Dandelion! Que bom te ver!

Dandelion Virou sua cabeça rapidamente em direção à voz. Se deparou com um dracônico vermelho, de estatura alta e olhos amarelos brilhantes, usando uma camisa casual branca junto de uma calça preta.

— Gargantuvo! —, Dandelion abriu um sorriso. Percebeu que o dracônico abrira os braços em sua direção. Se arrastou sonolentamente até o abraço do amigo, segurando-o forte.

— Hehe, bom te ver também, cara! – Gargantuvo afastou o rosto, dando uma boa encarada em Dandelion. — Puxa, eu tenho tantos planos para o clube de artes! A Azula me deu uma forcinha com a divulgação… passamos bem umas duas madrugadas pintando os posters.

— Deve ter dado um trabalhão — Dandelion bocejou, ainda lutando contra o sono. — Você parece estar levando bem essa vida de representante de turma.

— Ai cara, não poderia ser melhor! — Gargantuvo abriu um sorriso de canto excêntrico, ele parecia radiante.

Agnis finalmente alcançou o terceiro andar. Estava ofegante, e suado. Não era todo dia que ele subia 6 lances de escada para alcançar uma sala de aula. Aquilo era algo que ele não iria se acostumar tão facilmente. Gargantuvo foi o primeiro a perceber o humano cansado em frente às escadas.

— Ah! Olá! —, o dracônico acenou amigavelmente. Dandelion se virou confuso, para ver a quem Gargantuvo se direcionava. — Você deve ser um dos alunos novos, né? — Gargantuvo se aproximou rapidamente, estendendo sua mão em direção a Agnis.

Agnis encarou o dracônico desconfiado. Lembrava dos discursos que seu pai constantemente fazia sobre outras raças, e os conselhos que ele direcionava para o filho: “sempre mantenha um pé atrás”, “nunca se faça muito amigo deles”, “tente se enturmar somente com sua laia”.

— Uh… err… olá. — Agnis gaguejou, relutante sobre apertar a mão do dracônico.

— O que foi? Ele não morde. —, brincou Dandelion, já percebendo o que havia de errado no novo estudante.

— Bem, não que você saiba — piscou Gargantuvo para Agnis, então riu. Agnis e Dandelion acompanharam a risada, mas ambos estavam sem graça.

— Eu… uh… é, sou um estudante novo. — Agnis relutantemente cumprimentou Gargantuvo, segurando sua mão com certo receio.

Dandelion já havia sacado o que estava acontecendo. Não era a primeira vez que lidava com alunos preconceituosos. Sabia que seria um ano difícil, principalmente com essas novas políticas.

— Puxa, seja bem vindo… Ah! Nem me apresentei! Eu sou Gargantuvo! Gargantuvo Gredorim! Representante da turma! — Gargantuvo abriu um longo sorriso, claramente orgulhoso do seu título. — Esse é o…

— Dandelion. —, cortou o meio-elfo. — Só Dandelion.

— Prazer, Dandelion e… Gargantuvo. Eu… sou o Agnis. —, acenou Agnis com a cabeça.

— Agnis! Bem, seja bem vindo à turma! — Gargantuvo não percebia o olhar de desprezo que os dois trocavam entre si. — Se for do seu agrado, podemos apresentá-lo o campus no intervalo!

— Ah… — Agnis pensava em alguma desculpa para evitar aquela situação. Não queria ser visto andando com esse tipo. — Eu acho melhor…

— Ora, não seja tímido. —, cortou Dandelion, ríspido. — Não é como se fosse te matar dar uma volta pelo campus, não é?

Agnis bufou. “Ele tá me provocando?”, pensou para si. “Não vou deixar assim. Acha mesmo que um bicho que nem é elfo nem humano vai ser melhor que eu?”

— Claro que não! — Confirmou Agnis, raivosamente. — Seria ótimo dar uma volta para conhecer a faculdade.

— Excelente! — Gargantuvo deu pequenas palminhas de empolgação. — Puxa, você vai adorar esse lugar! A gente tá com um projeto de clube de artes, e talvez…

— Ei, os três! — Uma voz grossa chamou-lhes a atenção. Era um anão, com camisa branca, colete azul marinho com bordas douradas, e uma calça social cinza. Ele tinha o cabelo ruivo penteado para trás, além de uma longa barba trançada. Sua voz era pesada, e impunha respeito. — Para dentro, vamos! A aula já vai começar.

Gargantuvo foi o primeiro a entrar. Antes de entrarem, Dandelion e Agnis trocaram olhares severos, ásperos, até que finalmente se colocaram para dentro da sala.