Chapter Text
“Realmente acho que eu deveria dar um mortal no final,” insiste Glow. Parece um disco arranhado, repetindo a mesma sugestão absurda toda vez que terminamos de repassar nossa coreografia.
Considero-me uma pacifista, assim como todas as fadas da mente. Não acreditamos em resolver problemas na base da violência quando sempre há a possibilidade de diálogo. Fomos ensinados que lutas são uma verdadeira barbárie, e a simples ideia de uma guerra é o suficiente para contorcer o estômago de até o mais forte entre nós.
No entanto, estou a um passo de dar um murro na cara de Glow Winter.
“A música é lenta demais para isso,” digo, com firmeza, mas é impossível esconder a irritação.
Frustrado, Glow ajeita o cabelo loiro ondulado com uma das mãos e se vira para Daisy Grass, que está inquieta, pouco à vontade, na banqueta do piano, o que me deixa inquieta e pouco à vontade porque consigo sentir cada gota de nervosismo emanando dela como se fosse minha. “Você sabe que tenho razão, Day,” implora a ela. “Vamos criar muito mais impacto se terminarmos com algo explosivo, em vez de seguir com o ballet.”
“Pelo contrário, menos é mais, e o impacto vai ser muito maior se terminarmos com uma pegada mais triste e introspectiva como a música pede,” argumento.
Estou prestes a arrancar os cabelos. Sei exatamente o que Glow está tramando. Quer que a coreografia se transforme em um show particular dele. Desde que a gente resolveu se juntar para o festival de inverno, ele tem aprontado esse tipo de coisa, fazendo o possível para ressaltar o próprio talento e me colocar de escanteio.
Se eu soubesse a diva que o cara é, teria corrido dessa colaboração como o diabo foge da cruz, mas o filho da mãe resolveu só mostrar a que veio depois que começamos os ensaios, e eu sou a porra de uma fada da mente e, mesmo assim, caí no papinho dele. Glow chegou falando todo entusiasmado sobre a apresentação e aquilo me contagiou, mas eu só deixei passar o pequeno detalhe de que ele estava animado para ele brilhar no festival e não o resto de nós, e agora é tarde demais para pular fora. Investi muito neste número e, para falar a verdade, sou completamente apaixonada pela música. Daisy escreveu uma canção fantástica, e parte de mim não está com a menor vontade de decepcioná-la. Além do mais, tenho provas concretas de que a faculdade prefere coreografias de casais a solos, porque as últimas quatro apresentações dignas do primeiro lugar foram de casais. Os juízes ficam loucos com todo o drama e romance da coisa, o que essa composição tem de sobra.
“Day?” insiste Glow.
“Hmm…”
Consigo sentir a ruiva mignon praticamente se derretendo sob o olhar magnético de Glow. O sujeito tem esse poder sobre as mulheres. É bonito de doer, além de ser um dançarino fenomenal. Infelizmente, tem total consciência de ambas as qualidades e nenhum escrúpulo em usá-las a seu favor.
“Talvez Glow tenha razão,” murmura Day, evitando meus olhos ao me trair. “Por que a gente não tenta o mortal, Musa? Só uma vez, para ver qual dos dois funciona melhor.”
Até tu, Brutus?!, tenho vontade de gritar, mas mordo a língua. Como eu, faz semanas que Day tem sido forçada a lidar com as exigências absurdas de Glow e suas ideias “geniais”, e ela não tem culpa de se esforçar para encontrar uma solução.
“Certo,” resmungo. “Vamos tentar.”
Sinto Glow se preencher de triunfo, mas o sentimento logo é substituído por humilhação e derrota, porque quando terminamos a dança, fica óbvio que a sugestão dele é uma bela porcaria. Os mortais destoam demais das notas melancólicas da música e, em vez de realçar o talento dele, as piruetas apenas o fazem parecer um palhaço passando vergonha.
“Acho melhor continuar com o ballet original.” Daisy ergue o olhar para Glow e morde o lábio inferior, e o temor dela com a reação dele me atinge com um revirar do estômago, deixando-me enjoada.
Embora seja arrogante, Glow não é burro. “Tudo bem,” retruca e eu sinto o nervosismo de Daisy afrouxar suas garras ao nosso redor, abrandando a minha náusea. “A gente faz do seu jeito, Musa.”
Cerro os dentes. “Obrigada.”
Felizmente, nosso tempo acaba e temos de liberar a sala de ensaios para uma das aulas do segundo ano. Ansiosa para sair dali e me livrar de todos aqueles sentimentos horríveis, pego depressa minha bolsa e visto meu casaco de lã. Quanto menos tempo perto de Glow, melhor.
Nossa, não suporto esse cara.
Ironicamente, estamos ensaiando um número de amor.
“Mesmo horário amanhã?” Ele me fita, esperando a resposta.
“Não, amanhã é às quatro, lembra? Tenho um encontro marcado com a senhorita Dowling toda quinta à noite.”
A inveja de Glow me atinge como um soco na costela à medida que seu rosto se cobre de desgosto. “Ah, é, as suas aulinhas particulares. A gente já saberia essa coreografia de trás para frente, sabe, se a sua agenda não fosse tão… concorrida.”
Arqueio uma das sobrancelhas. “Disse o cara que se recusa a ensaiar nos fins de semana. Porque eu estou disponível tanto nas noites de sábado quanto de domingo.”
Glow faz uma careta e vai embora sem dizer uma palavra.
Babaca.
Deixo escapar um suspiro profundo. Agora que não sinto mais toda a porcaria que emana do cara, reconheço um nervosismo familiar ainda remexendo meu estômago. Então me viro e percebo que Day continua no piano, ainda mordendo o lábio inferior.
“Sinto muito, Musa,” diz, baixinho. “Quando chamei vocês para dançar a minha música, não achei que Glow seria tão difícil.”
Minha irritação desaparece ao sentir na pele o quanto ela realmente está chateada. “Ei, não é culpa sua,” tranquilizo-a. “Também não imaginei que ele pudesse ser tão filha da mãe, e olha que eu sou uma fada da mente. Mas o cara não deixa de ser um dançarino excepcional, então vamos tentar nos concentrar nisso, tá?”
“Você também é uma dançarina excepcional. Por isso escolhi vocês dois. Não poderia imaginar mais ninguém dando vida a essa música, sabe?”
Sorrio para ela. É um doce de pessoa, sem contar que é uma das compositoras mais talentosas que já conheci. Todas as músicas do festival têm de ser escritas por um aluno do curso de composição musical, e, antes mesmo de Day vir falar comigo, já planejava pedir para usar uma das canções dela.
“Prometo que vou fazer jus à sua música, Day. Não liga pros chiliques do Glow. Acho que ele só discute pelo prazer de discutir.”
Ela ri. “É, deve ser. Até amanhã.”
“Até. Quatro em ponto.”
Aceno de leve, saio da sala e sigo em direção aos corredores.
Uma das coisas que mais gosto em Alfea é o campus. O castelo antigo é recheado de torres cobertas com eras que se conectam umas às outras por caminhos de paralelepípedos ladeados por pedras enormes e bancos de ferro forjado. A universidade é a primeira do reino de Solaria, e o rol de ex-alunos ostenta milhares de pessoas influentes, inclusive toda a linhagem da família real.
Meu alojamento fica a cinco minutos da torre de música, e suspiro aliviada quando finalmente chego e passo pela porta. Foi um dia longo, e tudo o que quero é tomar um banho quente e me arrastar para a cama.
O dormitório que divido com as meninas parece mais uma suíte do que um quarto de alojamento normal, e essa é uma das vantagens de se ter a herdeira do trono de Solaria como colega de quarto. Temos três quartos onde dormem duas de nós em cada um, uma área comum e até uma cozinha. O único ponto negativo é que precisamos dividir o banheiro entre nós seis, mas, por sorte, nenhuma de nós é bagunceira, então a privada e o chuveiro em geral estão brilhando de limpos.
Falando na herdeira de Solaria, é ela quem está na suíte e ergue a cabeça ao me escutar entrar.
“Oi,” cumprimento Stella, que está saindo da cozinha.
“Ei. Você demorou hoje,” diz ela, seguindo-me até o quarto enquanto suga o canudinho do copo em sua mão. Está bebendo algo verde, grosso e absolutamente repugnante, mas é uma visão à qual aprendi a me acostumar. Faz duas semanas que minha colega de alojamento virou a “louca dos sucos”, o que significa que, toda manhã, nós cinco somos acordadas com o barulho ensurdecedor do liquidificador, enquanto ela prepara a bebida-refeição nojenta do dia.
“Tive ensaio.” Chuto os sapatos para um canto e jogo o casaco na cama, então começo a tirar a roupa até ficar só de calcinha e sutiã, apesar de Stella ainda estar junto à porta.
Teve uma época em que eu era tímida demais para ficar nua na frente das meninas. Quando as aulas começaram, passei a primeira semana só trocando de roupa dentro do banheiro ou esperando que Terra (a fada que divide o quarto comigo) saísse. Mas o negócio é que, ao prender seis meninas no mesmo espaço, acaba não existindo isso de privacidade, e mais cedo ou mais tarde você tem de aceitar esse fato.
Falando nisso…
“Cadê o resto das meninas?” pergunto. É raro encontrar a suíte tão vazia assim, ainda mais nesse horário.
“Então…”
O tom de casualidade que ela usa não corresponde com o sentimento de apreensão emanando dela e me faz levantar a guarda.
“O quê?”, pergunto, pegando meu roupão pendurado atrás da porta.
“Vai ter uma festa naquele pub em Blackbridge, o Grapevine, na quarta à noite.” Seus olhos azuis adquirem um brilho fixo. “Fiquei encarregada de te comunicar que você vai com a gente.”
Solto um gemido. “Uma festa em um pub? Nem pensar.”
“Ah, vai sim.” Ela cruza os braços. “As provas já acabaram, não tem desculpa. Não me faz usar a cartada do meu título de princesa e te lembrar que você é minha súdita e é obrigada a fazer tudo o que eu ordeno.”
Grunho, revirando os olhos. Odeio festas. Como fada da mente, a minha magia está basicamente sempre ligada, o que torna lugares lotados a porra de um pesadelo. Sentir todas aquelas sensações de uma vez só, ainda mais em um pub, onde todos vão estar com as emoções à flor da pele devido ao álcool e à música alta costuma ser a encarnação do que eu chamo de inferno pessoal.
Stella alivia o tom ao ver a aflição em meu rosto. “Vamos lá, Musa, você mesma disse que ia tentar fazer um esforço para ser mais sociável na faculdade. Eu e as meninas concordamos em ir embora na hora que você quiser. A gente só quer que você saia e se divirta um pouco, para variar. Você só fica trancada nesse quarto e só sai para ir às aulas. Tá começando a nos preocupar. Mas se ficar ruim, eu juro que a gente mete o pé de lá. Até a Aisha concordou em ir, e Deus é testemunha de que ela é tão fã de festas quanto você.”
A vergonha faz meu estômago revirar. Vergonha e arrependimento, além de uma pitada de espanto, porque, cara, elas são mesmo amigas inacreditáveis. Fico comovida pelas garotas estarem preocupadas comigo e quererem que eu me divirta, mas, ao mesmo tempo, odeio que elas tenham de ter todos esses cuidados comigo.
“Tudo bem,” dou o braço torcer, não apenas pelas meninas, mas por mim também. É verdade que eu disse a elas que seria mais sociável, e também jurei a mim mesma que faria um esforço para tentar fazer coisas diferentes este ano. Relaxar um pouco e parar de ser tão reclusa. Uma festa em um pub pode não ser a minha opção preferida de lazer, mas quem sabe não acabo me divertindo.
O rosto de Stella se ilumina. “Oba! Nem precisei usar meu trunfo.”
“O trunfo não era me recolher à minha insignificância como plebeia?”, pergunto desconfiada.
Um sorriso se delineia nos cantos de seus lábios. “Eu tinha um reserva. Sam vai estar lá.”
Meu pulso dispara. “Como você sabe?”
“Terra e eu encontramos com ele no refeitório, e ele disse que vai.”
“Ah.” Sinto minhas mãos ficarem suadas enquanto finjo procurar um pijama no guarda-roupa.
Stella solta uma risada. “Eu devia ter começado por aí, né. Ia te convencer facinho, facinho.”
Fecho a gaveta com um baque e me viro para encará-la. “Quer parar de encher o saco, alteza?”
Stella ergue os braços em sinal de rendição. “Não me leve a mal, acho o máximo você estar a fim de alguém. Só não entendo o porquê dessa obsessão pelo irmão da Terra tão de repente. Você ficou fascinada pelo cara antes mesmo de ver ele.”
O desconforto sobe por minha coluna. “Sam não é.. como os outros. Ele é diferente.”
“Disse a menina que nunca trocou duas palavras direito com ele.”
“Ele é diferente,” insisto. “É quieto, sério e, pelo que pude perceber, não pega qualquer coisa que use saia igual à maioria dos meninos desse lugar. Ah, e é inteligente… Semana passada estava lendo Charles Dickens no jardim da faculdade.”
“No mínimo, alguma leitura obrigatória.”
“É nada.”
Ela franze a testa. “Como você sabe?”
Sinto as bochechas corarem. “Uma menina perguntou na sala outro dia, e ele disse que Charles Dickens era o autor de que mais gostava.”
“Ai, meu Deus. Você deu para bisbilhotar a conversa dos outros agora? Que coisa de psicopata.” Ela deixa escapar um suspiro. “Certo, fechado. Quarta à noite você vai estabelecer uma conversa de verdade com o cara.”
“Talvez,” digo, sem querer me comprometer. “Se acabar rolando…”
“Eu vou dar um jeito de acontecer. Sério. Não vamos sair daquele pub até você falar com Sam. Não quero nem saber se vai ser só ‘Oi, tudo bem’. Você vai falar com ele.” Ela ergue o indicador do ar. “Capisce?”
Deixo escapar um risinho.
“Capisce?”, repete, com firmeza.
Depois de um segundo, solto um suspiro me rendendo. “Capisco.”
“Ótimo. Vou mandar uma mensagem para as meninas avisando que elas já podem voltar para o quarto.”
Faço uma careta. “Elas realmente esvaziaram o quarto só para isso? Eu sou tão aterrorizante assim?”
Stella dá de ombros. “A gente achou que você se sentiria mais à vontade para pensar no assunto sem ter que sentir todas as nossas emoções em cima de você. Agora anda logo com esse banho pra gente poder ver dois episódios de Gossip Girl antes de dormir.”
“Um episódio. Estou muito exausta para mais do que isso.” E abro um sorriso para ela. “Capisce?”
“Capisco,” resmunga, antes de sair do meu quarto.
Sorrio comigo mesma e pego o restante das coisas para tomar banho, quando surge outra distração — mal deixei o quarto e ouço um gato miar dentro da minha bolsa. Escolhi o lamento estridente como toque de mensagem porque é o único irritante o suficiente para chamar minha atenção.
Coloco meus itens de banho na cômoda, vasculho a bolsa até achar o celular e dou uma olhada na mensagem na tela.
Oi, é o Riven. Queria confirmar os detalhes sobre as aulas particulares.
Ah, não acredito!
Não sei se tenho vontade de rir ou de chorar. O cara é determinado, nisso tenho de dar o braço a torcer. Suspirando, digito uma resposta rápida e nem um pouco gentil.
Eu: Como vc conseguiu esse número?
Ele: Lista de chamada do grupo de estudos.
Droga. Eu tinha me inscrito no grupo no início do semestre, mas isso foi antes de Glow e eu decidirmos que tínhamos de ensaiar segundas e quartas na hora exata do grupo de estudos.
Outra mensagem aparece na tela antes que eu possa responder, e quem disse que é impossível inferir o tom de voz de uma pessoa por um torpedo estava definitivamente errado. Porque o tom de Riven é irritante no último nível.
Ele: Se vc tivesse aparecido no grupo, eu não precisaria mandar msg.
Eu: E vc continua não precisando me mandar msg. Na vdd, preferia que não tivesse me mandado.
Ele: O que vc precisa pra dizer sim?
Eu: Absolutamente nada.
Ele: Ótimo. Então pode fazer de graça.
O suspiro que estava reprimindo me escapa.
Eu: Vai sonhando.
Ele: Que tal amanhã de noite? Estou livre às 8.
Eu: Não posso. Peguei a doença da névoa. Altamente contagiosa. Acabo de salvar sua vida, cara.
Ele: Ah, obrigado pela preocupação. Mas sou imune a pandemias que dizimaram milhões de pessoas no Outro Mundo de 1918 a 1919.
Pisco, surpresa pelo quão preciso ele foi. A resposta veio rápida demais para ter dado tempo dele pesquisar essa informação na internet, o que quer dizer que ele realmente sabe isso de cabeça. Hm. Talvez ele não seja tão burro quanto eu pensei que fosse. Não importa. Ainda não vou dar aulas para ele. O cara é insuportável. Está mais do que na hora de pôr um fim nisso.
Eu: Bem, mesmo assim, é bom não arriscar. Muito bom falar com vc e tudo mais. Boa sorte na segunda chamada.
Depois de vários segundos sem nenhuma resposta de Riven, dou um high five mentalmente em mim mesma por ter me livrado do sujeito de uma vez por todas.
Estou quase na porta, quando uma mensagem de foto mia no meu celular. Contradizendo o bom senso, faço o download da imagem e, um segundo depois, um peito nu invade a tela. Isso mesmo. Um peitoral liso, musculoso, torneado e o tanquinho mais seco que já vi.
Não consigo deixar de bufar alto.
Eu: Tá maluco?! Vc acabou de me mandar uma foto do seu peito!
Ele: Mandei. Ajudou?
Eu: A me espantar mais ainda? Sim. Parabéns!
Ele: A mudar de ideia. Tô tentando te convencer.
Eu: Tô fora. O que vc acha que eu sou? Vai tentar essa estratégia com outra. Obs: a foto vai pro SolariaLeaks.
Estou falando, claro, do maior site de fofoca da universidade. Ele é comandado por algum anônimo e todos os alunos, até professores, falam mal, mas não perdem uma postagem.
Ele: Beleza. Um monte de meninas vai gostar de ter uma imagem pra lembrar na hora de dormir.
Eu: Deleta meu número, cara. Tô falando sério.
Não espero a resposta. Só jogo o celular na cama e vou tomar meu banho. No momento, Riven é, literalmente, a última pessoa para quem eu daria aulas. O cara vive de implicância com os calouros, gritou comigo hoje de manhã e me reduziu a uma pervertida ao achar que poderia me comprar com uma foto de seu peitoral. Para alguém que diz precisar tanto da minha ajuda, ele só deu bola fora. Não. Eu definitivamente não vou lecionar para o Especialista mais babaca de Alfea.
